Línguas de fogo por toda parte. Nesta era barulhenta e furiosa em que vivemos, tempo de protestos e contraprotestos, as palavras já chegam abrasadoras, chamuscantes, escaldantes, picantes.

“Sejam todos prontos para ouvir, tardios para falar e tardios para irar-se”, escreveu Tiago, “pois a ira do homem não produz a justiça de Deus” (1.19-20). Mas poucos de nós — mesmo entre aqueles que seguem a Cristo — parecem acreditar que ouvir, mais do que falar, é o que poderia atender à realidade dos nossos dias.

Nós cedemos à tentação de “pensar que os tempos exigem o uso das armas do inimigo”, como Michael Wear diz em The Spirit of Our Politics [O Espírito da Nossa Política]. Justificamos nossas línguas de fogo como se fossem “simplesmente a maneira como se joga o jogo”, desconsiderando a trilha de destruição que deixamos — os grandes bosques devastados pela fagulha que sai dos nossos lábios (3.5-8).

Claro, não há nisso nada de novo sob o sol. A ira viaja mais rápido por gigahertz do que o mensageiro, embora nossa era não seja a única caótica ou tumultuada. A igreja já viveu coisas piores, principalmente nos perigosos primeiros dias após a ressurreição e ascensão de Cristo.

“[Eu] fui preso [...] espancado mais vezes do que posso contar, e estive às portas da morte repetidas vezes”, relatou o apóstolo Paulo sobre seu ministério naquela época. “Fui açoitado cinco vezes com trinta e nove chicotadas pelos judeus, espancado por varas romanas três vezes, apedrejado uma vez [...] Tive que atravessar rios, afastar assaltantes, lutar com amigos, lutar com inimigos. Enfrentei riscos na cidade, no campo, no sol do deserto e tempestades no mar, e fui traído por aqueles que eu pensava serem meus irmãos” (2Coríntios 11.23-27, The Message).

Era esse o momento cultural, quando o Espírito Santo veio aos discípulos, em Atos 2, e desencadeou um tipo diferente de língua de fogo sobre o mundo — uma língua que trouxe conexão, edificação e clareza, em vez de divisão, destruição e confusão. É este o legado espiritual que lembramos e celebramos no Domingo de Pentecostes. É um legado a que precisamos nos agarrar de novo, pois o momento que vivemos é igualmente desesperador e precisa dessas graciosas línguas de fogo e desse milagre de compreendê-las, que as acompanhou.

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Nas igrejas da minha juventude, qualquer discussão sobre o “vento impetuoso e forte” (Atos 2.2, versão King James) — que soprou naquela sala onde os discípulos estavam reunidos — girava em torno da questão do falar em línguas, em um ou outro sentido. No meu grupo de jovens carismáticos, os anciãos da igreja — que acreditavam na segunda bênção ou no segundo batismo do Espírito Santo — diziam que os adolescentes não poderiam servir na equipe de liderança juvenil se não orássemos em língua da glossolalia, também chamada de línguas. (Eu não falava.)

Enquanto isso, a igreja decididamente não carismática, que eu frequentava nas manhãs de domingo, não falava muito sobre o Espírito Santo. Fazíamos do Pentecostes uma boa lembrança, transformando a aparição do Espírito Santo em uma exposição de museu das mais completas, com delicadas chamas em estilo renascentista oscilando sobre as cabeças de santos plácidos. Talvez as coisas fossem um pouco estranhas naqueles dias, mas nós éramos ordeiros. Razoáveis. Normais e previsíveis. (Essa interpretação tinha a vantagem adicional de acalmar meu ego, me assegurando de que eu não era menos espiritual do que meus colegas do grupo de jovens.)

Apesar de suas conclusões serem muito diferentes, ambas as igrejas partiam da mesma pergunta: Como interpretarmos o milagre das línguas em Pentecostes? O foco nisso [isto é, nas línguas] era tão exclusivo, que foi só na idade adulta que aprendi que houve um segundo milagre no Pentecostes: junto com o milagre do falar em línguas, houve o milagre do ouví-las.

Deus enviou seu Espírito a um mundo afligido pela confusão de Babel, a fim de restaurar a mútua compreensão. O Domingo de Pentecostes marca o milagre do ouvir tanto quanto o milagre do falar [em línguas]. E em nossos dias — quando todo mundo grita e ninguém ouve, quando sabemos muito mais sobre as línguas de fogo escaldante de Tiago do que sobre as línguas restauradoras de Atos — o milagre da comunicação recíproca do Pentecostes é o que o mundo arrasado em que vivemos precisa que a igreja encarne uma vez mais.

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Em The Wolf Shall Dwell with the Lamb [O lobo habitará com o cordeiro], um pequeno livro sobre liderança em contextos multiculturais, publicado em 1993, o sacerdote episcopal sinoamericano Eric H. F. Law desvenda esse “milagre da comunicação”, enquadrando o relato de Atos 2 à dinâmica do poder social, econômico e político da época.

Em Atos 2, segundo Law escreve, vemos reunidos dois grupos de pessoas. O primeiro deles são os discípulos, grupo composto em sua maioria por pescadores e trabalhadores da Galileia — que hoje poderíamos chamar de valentões vindos do interior, com seus sotaques caipiras, para completar o quadro. Como aprendemos mais tarde em Atos, os primeiros líderes cristãos, como Pedro e João, eram conhecidos pelos anciãos e escribas judeus como “iletrados e incultos” (Atos 4.13, NASB), enquanto para os invasores romanos, Law diz que os primeiros líderes cristãos “não passavam de outra seita do judaísmo cujo líder havia sido executado”.

O segundo grupo é uma grande mescla de “judeus, tementes a Deus, vindos de todas as nações do mundo” (Atos 2.5). Quando comparadas aos discípulos, vemos que muitas das pessoas [desse segundo grupo] eram membros da elite judaica. Alguns deles conseguiam fazer viagens muito longas e caras para Jerusalém. Provavelmente alguns eram saduceus, os aristocratas religiosos que ocupavam assentos no conselho do Sinédrio, tinham influência política e conexões com pessoas poderosas no governo romano. Pode ser que alguns deles até tivessem se juntado ao coro que exigiu que Pilatos crucificasse Jesus, poucas semanas antes.

Em suma, segundo Law argumenta, esse segundo grupo poderia causar problemas para os seguidores de Jesus, e talvez alguns deles já tivessem feito isso. No entanto, foi para esse grupo que o Espírito Santo deu “o dom de ouvir e entender, embora o que era dito pelos discípulos estivesse em outra língua”. Nem todos na multidão pareciam aceitar o dom — afinal, alguns pensaram que os discípulos estavam bêbados (v. 13) —, mas muitos entenderam e ficaram atônitos e maravilhados com o que ouviam (v. 7).

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No Pentecostes, “Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios” e trouxe “justiça, santidade e redenção” (1Coríntios 1.27-30). Os fracos, ignorantes e impotentes foram compreendidos pelos fortes, instruídos e poderosos. O caminho normal do mundo foi invertido pelo reino de Cristo, o reino de cabeça para baixo. As línguas de fogo do Espírito trouxeram iluminação, não destruição.

Onde nós — evangélicos — nos encontramos hoje nesta história? Somos os poderosos ou os impotentes? Essa questão é complicada por fatores ligados a raça, grau de instrução e classe, e é central para muitas das batalhas de nossa guerra cultural, pois os mesmos comportamentos e os mesmos medos atuam de forma muito diferente, se vierem de uma minoria acuada, em vez de uma maioria paranoica.

Eu mesma sou de origem branca, rural e da classe trabalhadora. Hoje, meu marido e eu somos sólidos integrantes da classe média, mas eu fui a primeira pessoa da minha família a ir para uma faculdade — e quase não consegui chegar lá, pois deixei de fazer a inscrição para o SAT [um exame feito por estudantes que desejam ingressar no ensino superior], pois não entendia sua importância para entrar em uma faculdade. Minha cidade natal não fica na Galileia, mas é sem dúvida seu equivalente americano.

Conheço e amo muitos evangélicos brancos da classe trabalhadora que constroem a vida em cidadezinhas pequenas e agonizantes, tentando imaginar que futuro seus filhos terão nessas comunidades esvaziadas. Nenhum deles se sente privilegiado nem poderoso, mas todos eles se ressentem de ouvir que são. E, dependendo de onde venha a notícia, essas pessoas — do meu povo — são ofendidas, ou são esquecidas e [ficam] legitimamente ressentidas ou são “ignorantes fantoches fascistas” que representam uma ameaça existencial à democracia americana.

Essas caracterizações conflitantes são, em parte, um problema de comunicação. Falamos e falamos, mas não ouvimos, e em consequência disso não nos entendemos, nem mesmo dentro da igreja. Apontamos os pecados dos outros e nos calamos sobre os nossos pecados (Mateus 7.3). Ignoramos as nuances complexas que estão agindo nas comunidades dos outros e retribuímos amargura com amargura, juntando-nos ao coro de címbalos que retinem (1Coríntios 13.1).

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É neste espaço sufocante que a igreja precisa do vento fresco do Espírito Santo. Devemos nos arrepender de todas as maneiras pelas quais nos tornamos “uma igreja que teme mais o poder das circunstâncias culturais e políticas do que teme o poder de Deus”, como Wear afirma. E devemos pedir a Deus que nos ajude, pelo Espírito, a buscar os dois milagres do Pentecostes.

É isso que o momento exige de nós — e isso é verdade, quer tenhamos mais facilidade de nos ver como galileus, quer nos vejamos como seus ouvintes mais sofisticados. Suspeito que não estou sozinha em me ver em ambos os grupos: em certas situações, uma vantagem considerável me é oferecida por causa da cor da minha pele ou do jeito que falo; e em outras, sou uma caipira insegura sobre como transitar pelos corredores do poder. Contudo, em todas as circunstâncias, sou uma seguidora de Jesus, e minha identidade se encontra nele, em humilde submissão ao chamado de Cristo para que eu considere os outros superiores a mim mesma (Filipenses 2.3). Em todas as circunstâncias, devo orar para que Deus me dê o que preciso.

Acho que isso é verdade para todos nós que somos seguidores de Jesus. Às vezes, precisamos do dom de línguas: de uma determinação que nos capacita a ficar onde precisamos ficar, a resistir ao que devemos resistir e a dizer o que precisa ser dito. Mas às vezes precisamos do dom de ouvir, pois Deus nos pede para nos aquietarmos, ouvirmos e domarmos nossa língua.

Algumas vezes teremos poder. Algumas não teremos nenhum. Algumas vezes teremos necessidades. Algumas vezes teremos abundância. Algumas vezes seremos privilegiados e reverenciados. Algumas vezes seremos insultados e desprezados. Algumas vezes precisaremos defender com unhas e dentes aquilo que prezamos. Algumas vezes precisaremos entregar nossa própria vida. Em todas as estações e circunstâncias, porém, teremos o Espírito Santo, sempre ansioso para trabalhar em nós e através de nós para produzir a justiça que Deus deseja.

Carrie McKean é uma escritora do oeste do Texas cujo trabalho já apareceu no The New York Times, The Atlantic e na revista Texas Monthly. Você pode encontrá-la em carriemckean.com.

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