As pessoas estão deixando a igreja hoje por vários motivos — que vão desde questões como abuso espiritual ou sexual praticados por líderes, igrejas que se dividem, legalismo ou hiperpolitização. Uma pesquisa recente do Barna Group descobriu que duas das principais fontes de questionamentos, para a maioria dos crentes, são experiências negativas vividas em uma instituição religiosa e a hipocrisia de pessoas religiosas.

Mas nem todos os que tiveram uma experiência ruim em uma comunidade de fé optam por deixar a igreja ou o cristianismo por completo. Alguns permanecem na congregação que os feriu, e muitas vezes se mantêm lá por causa de relacionamentos que prezam ou por um senso de lealdade à instituição. Outros tentam apertar o botão da reinicialização e começar de novo em uma nova igreja, denominação ou tradição.

Qualquer que seja o caso, essas feridas do passado não desaparecem como num passe de mágica. Na verdade, novas experiências em outra igreja, quando sobrepostas a experiências do passado, podem exacerbar a dor daqueles que permanecem. Os bancos da igreja hoje estão cheios de pessoas que carregam cicatrizes — ou feridas ainda abertas — de mágoas sofridas na igreja. Em geral perguntamos por que as pessoas devem permanecer na igreja, mas às vezes essa pode ser a pergunta errada. Em vez disso, acho que precisamos falar mais sobre como permanecer na igreja.

Eu tive que responder a esta pergunta para mim mesma, como uma sobrevivente de feridas causadas pela igreja. Hoje estou frequentando outra congregação, mas a jornada para permanecer ligada a uma igreja local, depois do abuso que sofri, não tem sido nada fácil.

Também estou aprendendo ao observar como outros conduziram seu relacionamento com a igreja local, depois de terem sido feridos por irmãos e irmãs em Cristo. E o que descobri é que aqueles que optam por permanecer ligados a uma comunidade de fé local, apesar de seu trauma, têm sábias percepções sobre confiança, perdão e discernimento — que são valiosas não apenas para aqueles que foram feridos, mas para todo o corpo de Cristo.

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Dê nome e revele as especificidades das feridas causadas pela igreja

Quando se trata de processar feridas causadas pela igreja, algo que ajuda é saber que você não está sozinho e que outras pessoas tiveram experiências semelhantes. Mas é igualmente importante identificar a fonte de seu próprio trauma e separá-la de outras narrativas de abuso que existem na igreja em geral.

Rachel Baker, uma esposa de pastor, descreveu seu processo de pensamento após uma experiência dolorosa em uma congregação anterior: “A fim de iniciar o processo de cura e perdão, tornou-se imperativo que eu identificasse ‘quem’ estava por trás da ferida. Assim que fui capaz de identificar ‘quem’ realmente causou o dano, fui capaz de separá-los da igreja como um todo. De repente, percebi que eu não estava na realidade sentindo ‘mágoa da igreja’, mas sim uma ‘mágoa relacional’.”

Essa diferenciação pode ser muito útil. Relacionamentos rompidos com outros membros da igreja podem deixar feridas profundas e contaminar outras amizades na congregação. Esse tipo de ferida pode fazer parte de uma constelação maior de relações danificadas, que gravitam em torno de um líder espiritualmente abusivo — ou ela pode limitar-se a uma luta entre dois indivíduos. Por isso é importante identificar a origem e a extensão da ferida.

Para muitos, porém, essa identificação não é possível. Embora nem toda experiência de mágoa vivida na igreja leve a um trauma religioso, padrões repetitivos de dano moral e de abuso espiritual são muito mais difundidos do que rompimentos relacionais isolados.

Uma mulher me disse que viu muitos casos de homens em posição de liderança que abusavam de seu poder, mentiam e ocultavam imoralidades. Agora ela luta para manter o coração aberto, combatendo o cinismo e o desejo de sair da igreja. Ela credita como algo fundamental para ajudá-la a permanecer ligada à igreja o tempo que tem passado com um conselheiro profissional licenciado. “Durante esse processo, tenho chorado muito, confessado minhas próprias reações pecaminosas e optado pela obediência em vez do desespero”, disse ela.

Há um aumento na conscientização, em alguns círculos da igreja, a respeito da necessidade de as congregações se tornarem informadas sobre traumas, para ministrarem melhor a sobreviventes de abuso espiritual.

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Nos primeiros anos, após minha própria experiência de abuso espiritual, o aconselhamento cristão e sessões com um diretor espiritual maduro me ajudaram a reconhecer e a processar minha dor e a dar início à cura — bem como a aprender como lidar com os maus conselhos que recebia de outras pessoas.

Alguns amigos bem-intencionados enfrentavam a confusão, a raiva e a tristeza que eu sentia com clichês do tipo: “Bem, você sabe que não existe igreja perfeita! E, mesmo que existisse, você ou eu arruinaríamos tudo no momento em que entrássemos pela porta.” Eu já tinha lido as epístolas e sabia que a Bíblia esté repleta de casos de igrejas imperfeitas.

Mas um bom conselheiro me ajudou a entender que esse tipo de resposta é uma espécie de escape espiritual que não visava me consolar, antes visava mais aliviar o desconforto que minha dor lhes causava. Um instinto semelhante influenciou os amigos de Jó nas respostas (erradas) que deram ao seu sofrimento.

Em vez disso, uma cura holística de feridas causadas pela igreja requer que façamos um reconhecimento honesto da natureza e da extensão de nossa dor — em vez de tentarmos “seguir em frente” muito depressa.

Em um episódio bônus do podcast The Rise and Fall of Mars Hill, Mike Cosper entrevista a terapeuta cristã Aundi Kolber, que estuda os efeitos do trauma espiritual em nosso corpo — e cita obras como o influente livro de Bessel van der Kolk , The Body Keeps theScore [O corpo mantém os registros]. “Nós carregamos as cicatrizes, carregamos os danos. (…) E chega um momento em que acredito que o corpo diz: Chega”, disse Kolber. “Creio que é a graça de Deus.”

Como observa Russell Moore, a mesma coisa pode acontecer no corpo de Cristo como um todo: “O que não é reparado é repetido — e o que não é reformado não pode ser trazido de volta à vida”.

Mudar de igreja, de denominação ou de tradição

Muitos dos sobreviventes, no entanto, acham que acabaram ficando na igreja porque foram para outra congregação, denominação ou tradição.

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O abuso espiritual muitas vezes pode remodelar nossas prioridades, perspectivas e preferências. Por exemplo, se um sobrevivente foi ferido por um líder narcisista ou em uma megaigreja chamativa, essa pessoa pode procurar uma igreja local com uma estrutura de liderança descentralizada ou uma congregação menor e mais simples. Ou os sobreviventes de uma igreja que segue um modelo mais empresarial podem procurar uma comunidade que opere mais como uma família do que como um negócio.

Outras pessoas foram feridas por igrejas que se apresentavam como famílias saudáveis por fora, mas eram disfuncionais por dentro. Infelizmente, a doutrina sólida por si só não cria automaticamente uma comunidade espiritual saudável.

O conselheiro Jeff VanVonderen nos lembra que o modelo do Novo Testamento para uma igreja saudável é um lugar em que há apoio, amor e espaço para estarmos em processo. Ele sugere que observemos como os membros interagem uns com os outros, para identificarmos se uma comunidade é realmente forte e saudável ou se é uma placa de petri [instrumento de laboratório utilizado para identificação e cultura de microorganismos] em potencial para abusos espirituais.

Wendy Alsup fazia parte da hoje extinta megaigreja não denominacional Mars Hill, que ficava em Seattle. Mais de uma década depois, ela agora mora em outra parte do país e frequenta uma pequena igreja denominacional.

“Eu simplesmente tenho hoje a maturidade e a sabedoria que eu não tinha anos atrás sobre que tipo de líder procurar”, disse Alsup. “Eu costumava ser apaixonada pela pregação dinâmica e pelo crescimento rápido. Essas coisas me deixam nervosa agora (...) Não vejo mais utilidade em grandes produções dos cultos dominicais e não suporto mais fazer parte delas [das megaproduções].”

Mesmo assim, há muitos sobreviventes que deixaram congregações abusivas, mas ainda não encontraram nem se juntaram a outra igreja, pelos mais variados motivos, entre eles a pandemia. Na verdade, como Mike Moore disse em um artigo para a CT, esses últimos anos caóticos deixaram muitos crentes presos num “purgatório eclesiástico”, incertos sobre como se reconectar com a igreja.

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Depois de sete anos em uma igreja rural liderada por um pastor narcisista, uma conhecida minha visitou outra igreja com o marido, pouco antes da COVID-19 começar. Depois de tantos anos solitários em sua congregação anterior, esse casal de antigos missionários esperava finalmente desfrutar de uma comunidade encarnada. Mas devido a alguns problemas graves de saúde, eles não puderam comparecer aos cultos presenciais.

Perguntei à minha amiga o que os mantém conectados à igreja e nutridos espiritualmente, e ela listou várias coisas. Além de assistir aos cultos de domingo e se comunicar com a equipe da liderança de sua igreja local, eles têm comunhão com amigos espirituais de longa data e aproveitam a variedade de materiais de ensino e devocionais disponíveis online.

“Acreditamos que há algo de poderoso em nossa conexão fiel com o corpo de uma igreja local, mesmo quando esse corpo não é necessariamente fiel a nós”, disse ela. “Acreditamos que Deus pode estar trabalhando em nós e através de nós, apesar do que vemos e experimentamos e apesar das nossas feridas. É difícil. É doloroso. Gostaríamos que fosse diferente. Mas nós perseveramos.”

Nos primeiros tempos da minha própria ferida, quando frequentar os cultos de domingo parecia algo muito estressante para mim, mantive a conexão com o corpo de Cristo participando de um estudo bíblico comunitário e buscando outras maneiras de servir a Deus ao lado de outros crentes. Meu objetivo não era deixar a igreja para sempre, mas descobrir como poderia ficar.

E, enquanto buscava a sabedoria de Deus para seguir em frente, sabia que tinha de proteger meu coração contra a amargura em relação à minha antiga igreja, e me envolver na contínua obra do perdão — em parte, para não trazer aquela bagagem comigo para a minha próxima comunidade.

A confiança parece diferente, depois que se é ferido

No entanto, mesmo que possamos localizar nosso trauma, processá-lo na terapia e encontrar uma nova congregação onde nos sintamos bem, permanecer na igreja ainda pode deixar a nós, sobreviventes, com uma postura defensiva em relação aos líderes da nova igreja.

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Esse distanciamento emocional destina-se a atuar como um sistema de alerta precoce para reconhecer abusos de poder, antes que eles possam nos causar danos. Essa autoproteção pode vir da sabedoria da experiência vivida, mas também pode ser uma barreira para o crescimento futuro e novos relacionamentos. Este é o delicado processo de equilíbrio que os sobreviventes devem atravessar a longo prazo.

E embora possamos jamais ser capazes de recuperar o tipo de confiança inocente e de otimismo cor-de-rosa que um dia tivemos, existem maneiras de controlar nossa desconfiança.

Há alguns anos, um ex-pastor com uma história dolorosa de feridas causadas na igreja me disse que, em vez de tentar silenciar a voz cética em seu interior, ele aprendeu a administrá-la — reconhecendo-a como uma forma de autoproteção contra danos futuros. E quando damos as boas-vindas ao crítico interno da igreja que trazemos em nós, podemos de fato “dimensionar corretamente” a influência dessa voz, e com muito mais eficácia do que se tentarmos ignorá-la ou silenciá-la. Isso, por sua vez, nos ajudará a permanecermos presentes para Deus e para as pessoas ao nosso redor, em vez de ficarmos emocionalmente distantes.

Para sobreviventes, também pode ser útil lembrar que nossa sensibilidade e nosso discernimento podem realmente servir à missão da igreja a longo prazo.

“Mulheres e homens corajosos estão dando um passo à frente e dizendo: ‘Esta não é a visão de Cristo para a igreja, a liderança, os relacionamentos.’ Eles estão exigindo mais de nós como líderes”, observou o profissional de cuidado pastoral, Chuck DeGroat, em uma entrevista à CT. “Essas pessoas estão dispostas a fazer o trabalho duro de desmantelar sistemas e relacionamentos tóxicos, de identificar realidades prejudiciais, de caminhar na direção da esperança e da verdade em amor.”

Um homem me disse ter visto de perto a má conduta financeira e o abuso de poder de um pastor corrupto, antes de renunciar ao cargo de presbítero. “Eu não confio nem respeito mais ninguém automaticamente, só porque essa pessoa tem um título, uma posição ou influência.” Ele está frequentando uma nova igreja — embora com pouco envolvimento fora os cultos de domingo — mas permanece hipervigilante em busca de sinais de abuso de poder.

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E embora muitas vezes considere deixar discretamente sua igreja atual, ele escolheu ficar: “Sei que responderei perante o Cabeça da igreja, e seu sofrimento supera em muito o meu”.

“Não quero usar minha experiência com os ‘pastores de Ezequiel 34’ como desculpa para me desligar de Jesus”, disse outra amiga que deixou seu cargo em uma igreja de médio porte, depois de um doloroso e prolongado conflito. “A ideia de abandonar o próprio Jesus me faz chorar.” Suas palavras revelam a importância de buscar uma conexão mais profunda com Cristo, apesar — ou talvez precisamente por causa — da dor que ela continua processando em oração.

O apóstolo Paulo enfatizou a liderança de Cristo para pelo menos duas congregações que passavam por dificuldades. Sua oração em Efésios 1.18-23 enfatizou que o Jesus ressurreto detém a autoridade e o domínio plenos sobre todas as instituições e governos humanos — mesmo em uma época na qual a cultura predominante contava uma história diferente.

Em sua carta à igreja de Colossos — que estava sob ataque de falsos mestres que pregavam um evangelho diferente — Paulo afirma que Cristo “é a cabeça do corpo, que é a igreja; ele é o princípio e o primogênito dentre os mortos, para que em tudo tenha a supremacia”(Colossenses 1.18)

Os sobreviventes sabem melhor do que ninguém que nem tudo o que acontece em uma congregação reflete o caráter e a autoridade de Jesus. Mas lembrar que Cristo é o cabeça de sua igreja nos proporciona clareza e perspectiva em relação às ações de nosso corpo local de crentes. Como diz o pastor Benjamin Vrbicek, nossa hiperconsciência em relação a “maus pastores” aponta para um “anseio mais profundo por bons pastores — e, em última análise, pelo Bom Pastor”.

As Escrituras deixam claro que Deus não tem um plano B, se sua igreja falhar com ele — embora tenhamos falhado de inúmeras maneiras impressionantes e terríveis nos últimos dois milênios. Nossos pais e mães espirituais na fé nos lembram, através dos tempos, que a igreja sempre precisará de reforma. E essa reforma inclui aqueles de nós que foram feridos.

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Michelle Van Loon é autora de sete livros, entre eles Becoming Sage: Cultivating Meaning, Purpose, and Spirituality in Midlife.

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