Quando o assunto é ética sexual, cristãos e não cristãos tendem a ter visões profundamente diferentes. Todavia, essas diferenças podem obscurecer o modo que ambos vivem sob a influência de histórias e mitos sobre o significado e o propósito do corpo humano — e, frequentemente, nem ao menos percebem isso. No livro Every Body’s Story: 6 Myths about Sex and the Gospel Truth about Marriage and Singleness [A história de cada corpo: 6 mitos sobre sexo e a verdade do evangelho sobre o casamento e a solteirice], Branson Parler faz uma análise dos mitos de maior influência fora da igreja (o individualismo, o romance, o materialismo) e dentro dela (a teologia anticorpo, o legalismo e o evangelho da prosperidade sexual).

Rachel Gilson, escritora e ministra de jovens universitários, conversou com Parler — diretor de educação teológica no The Foundry, um ministério baseado em Grand Rapids, Michigan — sobre a relação entre nosso corpo e as verdades centrais do evangelho.

O título do seu livro levanta uma pergunta: Como o corpo conta uma história?

Cada história implica um modo de viver no corpo. Por meio daquilo que faz, o nosso corpo aponta para a narrativa maior da qual faz parte. Portanto, se eu quiser de fato compreender suas convicções mais profundas, preciso observar o que você faz [ou como se relaciona] com o próprio corpo. Trabalho, descanso, dinheiro, ambição, sexo — tendemos a ver essas coisas como peças desconectadas, em vez de vê-las como peças que estão entrelaçadas em uma única história.

É fácil falar sobre nossas crenças de um ponto de vista intelectual. É bem mais complicado perceber como o modo que vivemos revela nossas convicções mais profundas sobre o que consideramos uma vida boa. Tome como exemplo os ritmos de trabalho e descanso, ou o Sabbath. Dizer que acredito que Deus cuidará de mim é uma coisa; no entanto, de fato parar de trabalhar [e confiar nisso] é algo completamente diferente.

A maioria de nós conta uma história sem nem ao menos perceber. Contudo, se você observar alguém por alguns dias, semanas ou meses, enxergará essa história com muito mais clareza.

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Você aborda mitos seculares e cristãos sobre o corpo. O que lhe inspirou a incluir mitos que influenciam esse dois grupos?

De um lado, minha inspiração veio do desejo de ajudar a mim mesmo, meus alunos e minha igreja a entender nossa própria cultura. Precisamos estar cientes das histórias que nos moldam e formam. No entanto, identificar tais histórias em nossa própria cultura pode ser particularmente desafiador, pois são pressupostos que consideramos naturais e inquestionáveis. Como cristãos, podemos facilmente cair na armadilha de pensar: “Ora, a cultura secular está repleta de narrativas problemáticas, mas a igreja sabe o que é certo.”

Para quem cresceu na igreja durante a era da cultura da pureza, especialmente quando se falava de sexo, corpo, casamento e solteirice, éramos bombardeados com uma teologia do “não”. Nunca ouvíamos falar do “sim” do amor abnegado que o evangelho propõe. Assim, podemos facilmente reconhecer as falhas da cultura em geral em relação ao que o evangelho ensina, mas também precisamos ver em que pontos a cultura da igreja falha nesse mesmo aspecto.

Depois de pesquisar e escrever seu livro, em qual mito você acha que os evangélicos americanos são mais propensos a acreditar? E qual mito eles são mais propensos a propagar?

Eu diria que é o mito do legalismo, a crença de que a justificação decorre do nosso próprio bom comportamento, e não da graça. Talvez isso esteja mudando, mas a mentalidade “comportar-se, crer, pertencer”, nessa exata sequência, ainda persiste em muitas igrejas. Em outras palavras, a primeira coisa que buscamos em potenciais futuros membros é se eles agem de acordo com o esperado, pelo menos no que diz respeito às coisas que consideramos importantes.

Devido a este modelo, que coloca o comportamento em primeiro lugar, nem sempre sabemos como interagir com pessoas que, numa cultura cada vez mais secular, são propensas a receber esse apelo para se comportar como algo opressor. Assim, acabamos traçando limites nada proveitosos entre quem é da igreja e quem é de fora. O legalismo acaba sendo o ponto de articulação para os outros mitos, pois, se você cair no legalismo, então haverá um efeito cascata e cairá em todos os outros [mitos].

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Por que você sentiu necessidade de escrever não só uma, mas duas vezes, que “Jesus tem pênis”?

[Risos] Isso soa exagerado? Não levamos nossos próprios corpos a sério porque não levamos o corpo de Jesus tão a sério quanto deveríamos. No meu livro, falo de como somos salvos através de Cristo, com seu corpo sexuado e dotado de gênero. Essa ideia demonstra que Deus não está isolado da criação, mas assume a humanidade, o que se traduz em ter um corpo físico. Meu objetivo foi tentar fazer com que essa ideia soe tão escandalosa para os bons cristãos de hoje quanto foi, quando pregada pela primeira vez no mundo antigo.

O Novo Testamento nos ensina que o Verbo se fez carne em Cristo. Às vezes, podemos adotar esse distanciamento intelectual da realidade, o que nos leva a subestimar o envolvimento de Deus com o mundo em que vivemos. Em minhas aulas, costumo mencionar que Jesus também soltava gases [como qualquer ser humano]. A atitude dos alunos é sempre a mesma: ficam sem saber como reagir, pois essa informação não se encaixa na imagem que eles têm de Jesus. Estou tentando encontrar maneiras de lembrar às pessoas que a Palavra de Deus é estranha, inusitada, e talvez a coisa mais inusitada sobre a Palavra seja que o Verbo se fez carne.

Como cristãos, nos dias de hoje, qual é a questão relacionada ao corpo na qual deveríamos pensar mais?

Eu sei que esse assunto pode ser delicado, mas acredito que, quando perguntamos para que serve o nosso corpo, para que serve o sexo, precisamos refletir com mais atenção sobre as tecnologias reprodutivas e a contracepção. Assim como acontece com outros assuntos, as pessoas geralmente consideram esses temas como questões éticas isoladas. No entanto, eles revelam uma narrativa que está por trás.

Não cabe a mim julgar ninguém por suas escolhas. Na verdade, uma das razões que me levaram a refletir mais profundamente sobre essas questões foi a minha experiência como pai. No entanto, as pessoas tendem a considerar a vasectomia ou os métodos contraceptivos como decisões individuais, em vez de ponderar sobre o que essas escolhas revelam sobre a natureza do nosso corpo e da realidade em si. Embora respeite a consciência de cada um, acredito que a consciência cristã deva ser guiada pela Escritura e pela comunidade cristã, e não por coisas como dizer “Já tenho dois filhos. Mais do que isso é complicado”.

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Você frequentemente destaca a importância da solteirice em paralelo com o casamento. Por quê?

Por vezes, nossa abordagem ao estado de solteiro não tem sido muito bíblica. Não levamos Paulo ou Jesus a sério o suficiente. Ser solteiro faz sentido em nossa história porque a igreja é a família de Deus e, assim sendo, é a nossa primeira família. O casamento não é nosso propósito supremo. Todos somos, antes de tudo, membros do corpo de Cristo. Devemos nos amar como irmãos, fazer votos uns aos outros e viver a vida juntos. Isso vale para todos os discípulos, e o estado civil de uma pessoa não faz de ninguém um cidadão de segunda classe no corpo de Cristo. Precisamos recuperar mais plenamente o senso de pertencimento uns aos outros. A solteirice traz solidão, e o casamento também traz — mas, em Cristo, nenhum de nós está verdadeiramente sozinho.

Qual é a sua maior esperança para esse livro?

Minha esperança é que as pessoas reconheçam que há uma ligação entre as boas novas do evangelho e aquilo que fazemos com nossos corpos. Nossa subcultura cristã passou pela cultura da pureza, pelo evangelho da prosperidade sexual e pela teologia anticorpo, e já vimos para onde essas ideias nos levaram. Espero que tenhamos chegado em um beco sem saída, orquestrado por Deus.

Contudo, acredito que a cultura secular também está percebendo que suas próprias narrativas não estão se sustentando. Um livro recente, Rethinking Sex [Repensando o sexo], de Christine Emba, analisa essa dinâmica, apontando que nunca fomos mais livres e nunca fomos mais infelizes. Então, minha esperança é que meu livro auxilie os cristãos a viver e a comunicar o evangelho de modo que outras pessoas percebam sua força, mesmo que optem por não aceitá-lo. Queremos que as pessoas vejam o “sim” do evangelho, pois é isso que nos atrai. Apenas crianças pequenas podem viver à base de “nãos”, e estamos presos em um estágio inferior de desenvolvimento se essa for a única maneira que temos de abordar essas questões.

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