A desconexão se cristalizou há 12 anos, quando eu (Dru) comecei a ministrar um curso introdutório sobre Antigo Testamento, para os alunos do primeiro ano. A cada semestre, estudantes cristãos devotos me relatavam que liam a Bíblia todos os dias. Eles conseguiam até recitar versículos-chave que tinham memorizado. Eram fluentes nos clichês teológicos cristãos. No entanto, apesar de seu engajamento constante com a Bíblia, eles ficaram chocados com o que encontramos em Gênesis — como o fato de haver algumas coisas sobre as quais Deus parece não ter ciência (Gênesis 11.5; 18.21; 22.12) —, sem falar de Juízes.

Comecei a perceber que a precária compreensão que eles tinham das Escrituras não se devia necessariamente à falta de leitura, embora isso também seja um grande problema nos EUA. De 2021 a 2022, o engajamento bíblico — medido pela frequência de uso, impacto espiritual e importância moral na vida cotidiana — caiu 21% entre os usuários adultos da Bíblia nos EUA. Foi a maior queda registrada em um ano pela Sociedade Bíblica Americana (ABS), em seu estudo anual State of the Bible. E quase 1 em cada 5 frequentadores de igreja disse que nunca lê a Bíblia.

Mas, no caso dos meus alunos, dos quais muitos leem a Bíblia diariamente e escolheram estudar em uma faculdade cristã, sua precária compreensão e aplicação das Escrituras parece acontecer devido à maneira que se envolvem com a Bíblia. E é dessa maneira que muitos cristãos americanos têm lido a Bíblia por décadas: por meio de “devocionais diários” ou de um “tempo de quietude”.

A maneira como esse tempo diário é em regra praticado hoje em dia dificilmente produzirá a proficiência necessária para entender e aplicar o ensino bíblico. O tempo devocional somente consegue recuperar seu poder de transformar nosso pensamento e nossas comunidades quando está inserido em uma matriz de hábitos de estudo das Escrituras.

Como meus alunos podiam ler tanto a Bíblia, mas terem tão pouco entendimento da Torá, prestarem quase nenhuma atenção ao seu foco no novo céu e na nova terra, e ficarem confusos sobre conceitos como a salvação e o mal? A CT discutiu anteriormente estatísticas da Lifeway Research que revelam essa tendência do analfabetismo bíblico entre a população em geral. Sua devoção diária às Escrituras parecia distanciá-los da compreensão de partes fundamentais da Bíblia.

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“Como um todo”, escreveu Ed Stetzer, em 2017, “os americanos, incluindo muitos cristãos, têm uma visão que não é bíblica sobre o inferno, o pecado, a salvação, Jesus, a humanidade e a própria Bíblia”. E da mesma forma que muitos cristãos americanos, meus alunos não pareciam entender detalhes necessários para compreender todo o alcance das Escrituras.

Quando pastoreei uma igreja, no início dos anos 2000, esses conceitos teológicos eram considerados temas básicos que meus paroquianos de 80 e poucos anos (alguns dos quais tinham apenas um simples diploma do ensino médio!) pareciam entender profundamente e aplicar em suas vidas e em seus ministérios. Assim como meus alunos, esses cristãos da Greatest Generation [da geração mais grandiosa] também cultivavam o hábito de fazer leituras devocionais curtas todos os dias.

No entanto, graças a formas variadas de estudo ao longo do tempo, eles frequentemente entendiam o contexto da passagem em que estavam meditando — isto é, entendiam o que vinha antes e depois dela. Eles até podiam ler uma pequena passagem todos os dias, mas a liam de modo a integrá-la em sua compreensão mais ampla das Escrituras, algo que obtinham a partir de um engajamento mais robusto [com a Bíblia], o qual ficava fora do campo da leitura diária.

Contudo, os meus alunos, que não praticam formas mais robustas de engajamento tradicional com a Bíblia — como estudos bíblicos indutivos, planos anuais de leitura da Bíblia, o lecionário ou a lectio divina —, têm poucas ferramentas para ajudar a contextualizar uma meditação diária sobre um versículo isolado como este: “Que diremos, pois, diante dessas coisas? Se Deus é por nós, quem será contra nós?” (Romanos 8.31). Esse contato com as Escrituras em doses pequenas, sem que tenhamos uma compreensão do todo, pode facilmente distorcer nossas interpretações. Tradições — já comprovadas pelo tempo — de formas mais extensas de engajamento com as Escrituras nos expõem o conteúdo bíblico e nos familiarizam com ele.

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Quando meus calouros descreveram seus momentos devocionais diários, comecei a entender um pouco da desconexão. O que lhes faltava eram leituras comunitárias mais extensas das Escrituras, nas quais se sentissem seguros para fazer perguntas ao texto e refletir sobre seu significado.

O tempo devocional somente consegue recuperar seu poder de transformar nosso pensamento e nossas comunidades quando está inserido em uma matriz de hábitos de estudo das Escrituras.

Para eles, ler as Escrituras era uma responsabilidade individual que alcançava necessariamente um resultado: Deus mostraria ao leitor algo sobre a passagem que tivesse relevância imediata para a sua vida. Muitos estavam jogando roleta bíblica todas as manhãs, abrindo a Bíblia em uma página qualquer e pedindo a Deus que mostrasse a eles o que deveriam aprender com aqueles versículos. Alguns deles liam um único versículo por dia. Outros liam uma passagem, talvez um capítulo.

Mesmo quando essa prática se assemelha superficialmente ao hábito diário de suas avós ou de seus bisavôs, os efeitos dela podem ser totalmente diferentes. A maioria dos meus alunos, mesmo aqueles que tiveram algum tipo de preparo bíblico na igreja ou em alguma instituição, era pega de surpresa por perguntas básicas que eu lhes fazia sobre a Bíblia que tinham nas mãos. Sem conhecer o contexto e sem ter uma compreensão maior [da Bíblia], com o passar do tempo, seu estudo superficial das Escrituras apenas agravava sua ignorância e sua má compreensão.

Este fenômeno de ler a Bíblia sem entendê-la está se tornando aparente de forma mais ampla. O Center for Hebraic Thought [Centro do Pensamento Hebraico], a organização que Celina e eu lideramos, sediou uma conferência sobre proficiência bíblica, em outubro de 2021, que reuniu líderes especializados em engajamento bíblico e em educação bíblica. Quase duas dúzias de organizações estavam representadas, entre elas, a American Bible Society, The Gospel Coalition, Council for Christian Colleges & Universities e Museum of the Bible, bem como professores de seminário, YouTubers, designers de software e especialistas em programas curriculares bíblicos.

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Quando contei a eles histórias sobre meus devotos alunos que não entendiam bem a Torá e os Evangelhos, todos concordaram que tinham visto esse mesmo fenômeno nos lugares que frequentavam, e estavam igualmente preocupados com a aparente ineficácia dos hábitos de leitura devocional de muitos cristãos.

Meus alunos não eram proficientes na Bíblia. Eles não conheciam de fato as histórias, os personagens, as ideias e os temas da Bíblia, e muito menos como os livros em si se encaixam e argumentam em favor de uma visão particular do mundo. E, como cristãos, devemos almejar algo que vá além do conhecimento básico. Esperamos conhecer e praticar o pensamento e a instrução das Escrituras com proficiência, estendendo sua sabedoria a todas as áreas da vida que ela não aborda diretamente.

Por exemplo, alguém que é proficiente na Bíblia saberá que o antigo sistema de justiça de Israel, conforme descrito na Torá, não previa encarceramento nem polícia. Mas alguém que é proficiente na Bíblia saberá que esse fato não significa automaticamente que devemos erradicar todas as prisões e forças policiais. Em vez disso, a pessoa que é proficiente na Bíblia será capaz de discernir os princípios subjacentes na Torá — os temas estruturais profundos e a orientação que informariam e moldariam nosso pensamento sobre crime, policiamento e encarceramento em nossos dias.

A proficiência se concentra em conhecer o vocabulário e a gramática das Escrituras — o que está na Bíblia e como a literatura funciona. A proficiência é a capacidade de pensar junto com o ensino reiterado nas Escrituras, e estender seu pensamento e suas práticas para situações de hoje — nas quais todas as variáveis ​​podem ser diferentes daquelas do contexto antigo, mas os princípios são os mesmos.

Se o mero conhecimento fosse o objetivo, as pessoas precisariam apenas saber a maior parte do que a Bíblia contém. Mas o conhecimento básico de “fatos bíblicos” não é suficiente. A própria Escritura exige que o povo de Deus medite e pratique suas instruções como comunidade, para que se torne sábio (Deuteronômio 4.10, 30.9-10). Deus disse a Israel que sua instrução, por meio de Moisés, era para que todo o Israel — o que abrange homens, mulheres, estrangeiros, nativos, jovens e velhos — se tornasse “um povo sábio e inteligente” (Deuteronômio 4.6). Jesus afirma que praticar sua instrução fará o mesmo (Mateus 7.24), mas meramente conhecer os textos não fará (Lucas 18.18-30).

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Se não pudermos aplicar com proficiência os princípios bíblicos, estendendo o pensamento das Escrituras a questões como criptomoeda, reforma policial e prisional, identidade sexual e de gênero e tudo o mais que os autores bíblicos não abordaram diretamente, então, não somos o povo sábio e com discernimento que Deus deseja que sejamos.

Image: Unsplash / Aaron Owens / Roberto Nickson

Para muitos cristãos, particularmente os evangélicos, esse tempo devocional de manhã é “talvez a mais básica de todas as disciplinas espirituais”, escreve David Parker, em uma edição de 1991 do periódico Evangelical Quarterly. “Devocionais diários” são tão fundamentais para o conceito de relacionamento com Deus de muitos evangélicos que eles não conseguem imaginar um cristianismo fiel sem isso. Mas sua reiteração como algo de uso corrente — pelo menos nos EUA de hoje — tem apenas cerca de 150 anos.

Muitos evangélicos defendem o momento devocional diário citando Mateus 6.6: “vá para seu quarto, feche a porta e ore a seu Pai, que está no secreto.” Mas esta passagem não leva em conta a forma particular que o tempo devocional geralmente assume.

O momento devocional de hoje normalmente envolve levar a Bíblia para um lugar privado, e “fazer isso logo de manhã, não fazer uso de formas prescritas de oração por escrito, [mas] sentar-se em silêncio e esperar que Deus fale com você, trazendo alguma orientação concreta para o dia”, escreveu em sua dissertação From Morning Watch to Quiet Time [Da vigília matinal ao momento devocional] Greg Johnson, pastor principal da Memorial Presbyterian Church em St. Louis.

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Johnson diz que a prática moderna do tempo devocional remonta à década de 1870, quando os evangélicos americanos fundiram duas práticas devocionais puritanas, que antes eram separadas: a oração privada e o estudo bíblico privado. Essa fusão de oração e estudo bíblico se transformou na “vigília matinal”, que enfatizava a oração intercessória. Daí, transformou-se em “tempo de quietude”, que tirou a ênfase da oração intercessória em favor da escuta silenciosa ou da meditação. Essa nova ênfase em indivíduos recebendo insights diários de Deus transformou a natureza do engajamento bíblico que foi ensinado a gerações de cristãos americanos.

Os devocionais diários têm sido caracteristicamente solitários, e em geral não envolvem um estudo rigoroso das Escrituras. Em vez disso, os leitores geralmente se concentram em um capítulo ou mesmo em alguns versículos por sessão, dos quais podem esperar receber alguma orientação de Deus para sua vida pessoal naquele momento. Os devocionais diários geralmente incluem um período de “escuta” orante da voz de Deus, que se manifesta, segundo se acredita, nos versículos lidos naquela sessão ou por meio de comunicação direta com a mente do ouvinte.

Embora essa escuta possa ser expectante, ela é essencialmente passiva. Em geral, é guiada por uma crença tácita de que a Palavra de Deus fala e transforma por meio de percepções repentinas, direcionadas individualmente a quem lê a Bíblia, e não por meio do estudo continuado da Palavra e do questionamento ativo na comunidade.

Esse ritual diário privado se beneficiou grandemente da publicação da Bíblia de Referência Scofield, em 1909, uma Bíblia de estudo individual, acessível e amplamente vendida no mercado. A Bíblia Scofield refletiu e promoveu a disseminação do dispensacionalismo entre os protestantes americanos. O dispensacionalismo tinha um poder de animar, segundo Greg Johnson nos disse em uma entrevista, porque dava às pessoas uma estrutura para ler o Antigo Testamento e sugeria que os leitores estavam se envolvendo novamente com as principais ideias bíblicas que os protestantes haviam ignorado.

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O uso da Bíblia Scofield no movimento dispensacionalista encorajou uma abordagem individualista ao estudo da Bíblia. Ou, pelo menos, inflou a confiança que os leitores tinham em fazer sua própria interpretação independente das Escrituras. Mark Noll observa em America’s Book: The Rise and Decline of a Bible Civilization, 1794-1911 [O Livro da América: A ascensão e o declínio de uma civilização bíblica, 1794-1911], “À medida que aprofundavam sua crença na capacidade de pessoas comuns compreenderem o significado claro da Bíblia”, o populismo [desse conceito] da Bíblia somente, pregado pelo movimento dispensacionalista, na verdade sustentou “uma elite composta por um corpo de professores que guiava outras pessoas, passo a passo, na leitura da Bíblia ‘por conta própria’”.

Em outras palavras, a noção de estudo independente [da Bíblia] era sustentada pelo comentário ao lado do texto bíblico. Ironicamente, “a Bíblia Scofield guiava os leitores proclamando justamente sua libertação de um guia”, escreve Noll.

Contrastando com sermões e estudos bíblicos em grupo, os devocionais diários se tornaram exercícios de formação interna e individual, compartilhando tendências com o modernismo secular da época. Os defensores do tempo de quietude começaram a identificar o principal benefício dos devocionais diários como “um eu transformado, em vez de um mundo transformado”, escreve Johnson em sua dissertação.

Embora a formação do caráter pessoal seja essencial, se tomada isoladamente, ela se alinha melhor com as tendências modernistas do que com o foco bíblico na formação do caráter por meio de hábitos, rituais e orientação da comunidade. Esse foco interno também pode moldar a construção da justiça em comunidades e sistemas — uma preocupação primordial dos autores bíblicos — como adesão a princípios éticos individualistas.

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Alguns praticantes do tempo devocional começaram a tratar a Bíblia mais como uma ferramenta de meditação do que como o ensinamento autoritativo de Deus e seu povo. Durante o tempo devocional, a contemplação progrediria para a confissão e para a meditação bíblica, que culminaria no registro de qualquer orientação divina recebida naquele dia. A leitura, como Johnson observa, pode ser de apenas uma curta passagem da Bíblia ou de um comentário devocional — não é um estudo extenso da Escritura vista como um corpus literário unificado.

Hoje, o tempo devocional diário geralmente não envolve nem as Escrituras. Como a CT já observou antes, a pesquisa de 2023 da Lifeway Research revelou que, embora 65% dos frequentadores de igrejas protestantes passem um tempo sozinhos com Deus diariamente, apenas 39% leem a Bíblia durante esse tempo. Se essa estatística significa que os cristãos estão trocando a leitura devocional apressada e fragmentada pelo estudo bíblico holístico em grupo, então, talvez isso seja muito melhor. Mas a queda no engajamento geral com a Bíblia, detectada no estudo da ABS, sugere que mais cristãos simplesmente não estão lendo as Escrituras.

Image: Unsplash / Kelly Sikkema / Zane Lee

No final do século 20, esse momento devocional diário havia se tornado um elemento fixo da ortodoxia em alguns setores do cristianismo. Christy Gates, diretora nacional de engajamento bíblico da InterVarsity Christian Fellowship, afirma que a prática do “TDD” (tempo devocional diário) no ministério nas universidades acabou se tornando o ponto baixo da vida espiritual de alguém. Perguntar a alguém sobre a sua “caminhada com Deus” passou a significar “você está fazendo seu devocional diário?”

Gates enfatizou que, mesmo quando um ministério ensina a prática do estudo bíblico em grupo junto com o TDD, como a InterVarsity faz, o estudo em grupo normalmente mingua, enquanto o TDD persiste. Por quê? Ela acha que o TDD está relacionado ao nosso individualismo religioso, que deseja que Deus fale conosco diretamente. No passado, o culto diário mostrava famílias ou comunidades pedindo a provisão de Deus; hoje, porém, ele consiste principalmente em indivíduos pedindo a Deus que fale com eles. O perigo é claro: ouvir insights dados por Deus nas Escrituras e em oração, sem que haja uma responsabilidade comunitária, pode gerar uma compreensão do cristianismo muito tênue, frágil.

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Cristãos que enfatizam o TDD como uma prática espiritual necessária normalmente apontarão para os momentos em que Jesus se isolava para orar como um modelo para este ritual: “De madrugada, quando ainda estava escuro, Jesus levantou-se, saiu de casa e foi para um lugar deserto, onde ficou orando” (Marcos 1.35). É evidente que, quando foi encontrado por seus frustrados discípulos, Jesus então explica por que ele deixou o povoado: “Vamos para outro lugar, para os povoados vizinhos, para que também lá eu pregue. Foi para isso que eu vim” (v. 38, ênfase acrescentada). Lucas também aponta para o hábito de Jesus: “Mas Jesus retirava-se para lugares solitários, e orava” (Lucas 5.16). Jesus estava, como de costume, em busca de descanso das massas exigentes ou em trânsito para a próxima parada, pois “foi para isso que eu vim”.

É razoável ver a oração privada de Jesus como um ritual que devemos imitar. No mínimo, parece ser uma prática sábia que emerge das Escrituras, mesmo que o tempo devocional de oração e leitura da Bíblia nunca tenham sido ordenados aos hebreus ou aos primeiros seguidores de Jesus.

Mas especialistas contemporâneos em engajamento bíblico concordam que o tempo devocional diário, que acabamos por juntar com a leitura diária da Bíblia, pode distorcer nossa compreensão das Escrituras. Os líderes de ministérios paraeclesiásticos que entrevistamos já haviam identificado que esse tempo diário de quietude e leitura devocional, quando consiste na única forma de absorção das Escrituras, é algo potencialmente problemático nas comunidades em que exercem seu ministério.

Professores que ensinam a Bíblia, administradores de seminários e pastores, assim como integrantes de organizações — como American Bible Society [Sociedade Bíblica Americana], Our Daily Bread [Nosso Pão Diário], Cru [Cruzada Estudantil e Profissional para Cristo] e InterVarsity — nos disseram, todos eles, que querem promover o engajamento bíblico diário. Mas eles também pretendem remodelar esse engajamento para pessoas como meus alunos do primeiro ano, ou seja, para aquelas pessoas que leem a Bíblia em doses pequenas todos os dias, mas não entendem o que estão lendo.

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Não há uma medida universal para aferir a proficiência bíblica. Nem há consenso sobre qual grau de conhecimento constitui essa proficiência. A ABS mede o que chama de “engajamento bíblico” (“engajamento” significa frequência de uso, impacto e centralidade na moralidade) em seus estudos intitulados State of the Bible [Estado da Bíblia]. Mas alguém pode ter uma classificação alta em “engajamento” sem realmente saber muito sobre a própria teologia das Escrituras ou sobre os pressupostos básicos dos autores bíblicos. Além disso, a evidência anedótica sugere que a proficiência bíblica vem passando por um declínio cada vez mais acentuado.

Se a proficiência bíblica está diminuindo, mesmo entre aqueles que fazem uma leitura devocional todos os dias, então, qual é o caminho que devemos seguir? A maioria dos ministérios paraeclesiásticos com os quais conversamos relata que tem considerado métodos que fornecem uma perspectiva mais ampla das Escrituras. Isso inclui rituais antigos de leitura das Escrituras, os quais muitas igrejas evangélicas raramente praticam (como a lectio divina, o ofício diário do Livro de Oração Comum, e assim por diante). Mas a prática mais mencionada pelos líderes de ministério foi a leitura pública, ou comunitária, das Escrituras.

De certo modo, essa forma de engajamento bíblico é o oposto do tempo devocional. Em vez de ler, as comunidades ouvem juntas longos trechos das Escrituras — às vezes a leitura tem a duração de 30 minutos a uma hora — usando Bíblias em áudio ou pedindo que as pessoas leiam a Bíblia em voz alta. Os professores que ensinam a Bíblia há muito notaram que o habitat natural das Escrituras fica nos ouvidos dos cristãos reunidos, não nos olhos dos indivíduos. Neste ponto, os efeitos do engajamento bíblico prolongado sobre a proficiência bíblica são todos anedóticos.

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De Moisés a Josias e Neemias, a leitura comunitária das Escrituras foi normal em pontos-chave da história de Israel. Entre outros casos, a leitura pública das Escrituras ocorreu no Sinai (Êxodo 19.7), durante as reformas de Josias (2Reis 23.1+2) e para todos os que retornaram a Judá, nos dias de Esdras (Neemias 8). E a prática nas sinagogas de ler a Torá e os Profetas todo sábado (Lucas 4.16-17; Atos 13.14-15) surgiu por volta do terceiro século antes de Jesus.

Todas essas leituras públicas incluíam explicações e o responso comunitário. Como Brian Wright argumenta em seu livro Communal Reading in the Time of Jesus [Leitura comunitária no tempo de Jesus], a leitura pública de literatura que varreu o Império Romano também incluiu os cristãos e seus textos sagrados. Para a igreja primitiva, isso teria incluído não apenas ouvir juntos [o texto bíblico], mas também questionar e raciocinar juntos sobre o que foi ouvido.

Então, quando Justino Mártir (155 d.C.) relata que os primeiros cristãos se reuniam aos domingos para ler as Escrituras “enquanto o tempo permitia”, devemos imaginar que essas leituras comunitárias não terminavam apenas com um amém em uníssono. Essas primeiras comunidades cristãs judaico-gentílicas provavelmente travavam um embate com o que tinham ouvido, para entenderem aquilo como comunidade.

O engajamento prolongado com as Escrituras não é novidade para a igreja. A seita de Jesus, seita judaica do primeiro século, foi criada com leituras semanais e longas da Torá e da Haftarah (Profetas) junto com o canto dos Salmos. Do lecionário medieval da igreja Católica Romana, também usado pelos reformadores protestantes, ao plano anual de leitura da Bíblia inteira de Robert Murray M'Cheyne, no século 19, a ampla e regular exposição às Escrituras foi um componente crucial do baixo e generalizado índice de proficiência bíblica na história da igreja.

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Podemos imaginar o quão estranho o nosso tempo devocional diário pareceria não apenas para os antigos israelitas, mas também para as antigas comunidades cristãs e judaicas. O que eles fariam com um seguidor devoto que lê sozinho algumas frases das Escrituras, diariamente, e então pede a Deus que revele algo para ele e para os dias de hoje? Este ritual parece ficar ainda mais bizarro quando o leitor não tem uma compreensão holística das narrativas, dos temas, da teologia e dos demais aspectos da Bíblia.

Se muitos evangélicos americanos não conseguem imaginar uma vida espiritual próspera sem esta leitura bíblica diária em estilo devocional, então, eles provavelmente não conseguem imaginar a vida espiritual da maioria dos judeus e dos cristãos ao longo da história — e de muitas comunidades cristãs do mundo atual — que não tinham acesso fácil a uma Bíblia pessoal. Devemos repensar nossa imagem do devocional e as maneiras que lemos as Escrituras, e nos familiarizar novamente com os comportamentos essenciais que sempre caracterizaram o povo de Deus.

Mas pode ser que estejamos precisando mudar o centro da gravidade devocional, passando-o das práticas solitárias para as práticas comunitárias.

Talvez devêssemos seguir o exemplo dado pela igreja primitiva, descrito por Justino Mártir, de cristãos que liam longos trechos da Bíblia juntos e discutiam as questões difíceis que o texto suscitava, em vez de ouvirem passivamente ou de confiarem de forma acrítica em comentários teológicos. Podemos aceitar a discordância com amor e humildade, em prol de uma compreensão mútua melhorada. Devemos nos disciplinar para deixar que nossos desconfortos e confusões sobre esse texto tão antigo venham à superfície, para que possamos superar as respostas rápidas e fáceis que muitas vezes varrem nossas maiores questões para debaixo do tapete.

E são precisamente essas questões e as necessidades percebidas que nos guiam em direção a compreender melhor a continuidade entre o Antigo e o Novo Testamento, o caráter consistente de Deus e a relevância das Escrituras para todas as áreas da vida, e não só “para que fale à minha vida hoje”.

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Se os rituais comuns de engajamento bíblico que temos hoje não estão funcionando, então, devemos deixá-los em favor de práticas de aprendizado profundo. Esses novos hábitos podem consistir em escuta comunitária, imersão profunda, leitura repetida de livros inteiros da Bíblia ou alguma outra estratégia. Mas a suposição de que o devocional diário por si só trará conhecimento e proficiência nas Escrituras não parece mais ser sustentável, visto que nunca foi.

O objetivo não é abandonar o tempo devocional. A nós foi dado acesso fácil a toda a instrução de Deus, e momentos solitários de oração e de reflexão fazem parte de uma vida cristã plena. Mas pode ser que estejamos precisando mudar o centro da gravidade devocional, passando-o das práticas solitárias para as práticas comunitárias.

Esperamos ver famílias e igrejas cristãs recriarem uma cultura de engajamento bíblico vigoroso e comunitário, que faria com que os tempos devocionais redundassem em práticas que gerem comunidades justas e pacíficas.

Dru Johnson é professor de estudos bíblicos e teológicos no The King's College, na cidade de Nova York. Ele e Celina Durgin dirigem e editam The Biblical Mind [A Mente Bíblica], publicado pelo Center for Hebraic Thought [Centro do Pensamento Hebraico].

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