A Bíblia difere do pensamento darwiniano em aspectos fundamentais. No entanto, os primeiros autores das Escrituras e os arquitetos da ciência evolucionária compartilharam um desafio semelhante: ambos procuravam compreender ambientes caracterizados por agressão, violência e competição acirrada por recursos escassos. Dru Johnson, estudioso da Bíblia e diretor do Center for Hebraic Thought [Centro do Pensamento Hebraico], explica esse e outros paralelos surpreendentes em seu livro What Hath Darwin to Do with Scripture? Comparing the Conceptual Worlds of the Bible and Evolution [O que Darwin tem a ver com as Escrituras? Comparando os mundos conceituais da Bíblia e da evolução]. Matthew Nelson Hill, autor de Embracing Evolution: How Understanding Science Can Strengthen Your Christian Life [Compreendendo a evolução: Como entender a ciência pode fortalecer nossa vida cristã], conversou com Johnson sobre a conciliação dos relatos bíblico e científico da realidade.

Como você resumiria seu livro em poucas palavras?

Os autores bíblicos têm um modelo conceitual específico que rege a forma como pensam sobre a realidade. O que Darwin mais tarde chamaria de seleção natural é algo sobre o qual eles realmente falam com bastante vigor nos primeiros capítulos de Gênesis, mesmo que não explicitamente nesses termos. Meu objetivo no livro é colocar esse modelo bíblico em diálogo com o modelo darwiniano da ciência evolutiva, para ver onde as duas visões de mundo subjacentes se assemelham e se contrastam. Meu argumento é que essas visões de mundo são mais complementares do que algumas vezes poderíamos supor.

Como você faz para manter uma visão elevada das Escrituras, ao colocá-las em diálogo com a ciência darwiniana?

Essa é a visão mais elevada das Escrituras que poderia haver, pois faz um esforço sério para avaliar as motivações e as noções filosóficas daqueles que escreveram a Bíblia. No entanto, isso muitas vezes causa desconforto entre aqueles que dizem ter uma visão elevada das Escrituras, porque nem sempre estamos acostumados a entrar no mundo intelectual dos próprios autores.

Em geral, pensamos na ciência como algo inerentemente secular em suas perspectivas e suposições. Mas quando a estudamos lado a lado com o mundo conceitual da Bíblia Hebraica, podemos ver como ela representa uma das maiores expressões desse mundo conceitual. Passei muito tempo estudando o texto hebraico e acredito que, se você pudesse transportar os escritores daquela época para o presente, e atualizá-los sobre nosso conhecimento atual das coisas, como o conhecimento que temos dos sistemas solares e das galáxias, eles descobririam que tudo faz sentido.

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No início do livro, você argumenta que a ciência está contando uma história, e também que as Escrituras não são “meramente” uma história. Poderia explicar isso melhor?

Sempre que lemos uma explicação científica, ela quase sempre vem envolta em uma narrativa maior. Especialmente no nível quântico, muitos fatos científicos são quase inexplicáveis sem uma estrutura narrativa que nos ajude a entendê-los.

Quando você lê relatos sobre a evolução, dizendo como os seres humanos surgiram de vários ancestrais hominídeos, percebe que toda visão de mundo tem uma história ou relato das origens, que deve nos dizer de onde vem a moralidade e explicar a realidade que vemos hoje. As Escrituras, sob essa luz, não estão fazendo nada de estranho ao apresentar uma história das origens destinada a fornecer um fundamento para a moralidade e a ética, bem como para explicar o desenvolvimento de coisas como famílias, nações e sistemas políticos.

Muitas pessoas chegam aos primeiros capítulos de Gênesis com uma pergunta: Será que tudo isso realmente aconteceu? Acredito de fato que os antigos hebreus teriam lido essas histórias como relatos de coisas que realmente aconteceram. Mas, em outro sentido, a Bíblia resiste a esse tipo de enquadramento, porque está tentando oferecer algo que vai além de uma explicação funcional de como o mundo surgiu.

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Em uma das seções do livro, você aborda bastante a reprodução sexual, um tópico ao qual tanto a evolução quanto as Escrituras conferem grande importância. Como podemos falar sobre esse tópico de forma produtiva?

Se você é puritano em relação ao sexo, então aperte o cinto, porque os escritores bíblicos não são, especialmente quando se trata da necessidade de dar continuidade às linhagens familiares. Eu poderia citar o relato das duas filhas de Ló, que embebedaram o pai para fazer sexo com ele e gerar descendentes. Ou poderia apontar para Abraão, que prostituiu a esposa como forma de salvar a própria vida e preservar a possibilidade da família que Deus havia prometido.

Por que tudo isso foi incluído [na narrativa]? Acho que parte da resposta é que essas histórias transmitem algo da sobriedade que os autores bíblicos trouxeram para a condição caída e a fragilidade da humanidade e sua necessidade de redenção.

A morte, como você mostrou, é parte integrante da natureza. No entanto, as Escrituras retratam a morte como um grande inimigo a ser derrotado. Como podemos conciliar essas duas perspectivas?

Os autores bíblicos estão muito conscientes do fato de que a morte acontece e que é horrível. Eles estão cientes de como isso molda o mundo ao seu redor, mas também estão cientes de que não é assim que deveria ser.

No livro, uso a linguagem da doxologia “Gloria Patri” — “como era no princípio, é agora, e sempre será” — para delinear essa realidade. Esse hino em si, é claro, testifica que Deus é o mesmo ontem, hoje e sempre. Mas a linguagem sugere que as coisas estão diferentes depois da Queda, que o projeto original de Deus foi quebrado por causa do pecado. Portanto, podemos imaginar um mundo em que a natureza é criada para um bom fim, sem a necessidade da morte.

Se, como você afirma, a verdadeira ciência — a pesquisa e a investigação regidas pelo método científico — começou há cerca de 500 anos, como podemos ver a Bíblia como algo que nos diz alguma coisa sobre a ciência?

Há uma pergunta recorrente na história da ciência que, essencialmente, indaga: “Por que a ciência começou?” Pois, claramente, já havia grande atividade intelectual ocorrendo na China, na Mesopotâmia, no Egito, na Grécia, em Roma e em outros grandes impérios. Não havia escassez de pessoas muito inteligentes fazendo coisas muito inteligentes. Então, por que a ciência se desenvolve no Ocidente, com pessoas que essencialmente se apropriaram de uma visão hebraica da realidade?

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Uma boa resposta começaria assim: simplesmente não existe uma boa versão da ciência que se baseie na suposição de que nada do que observamos ao nosso redor é de fato real. Não podemos dizer que tudo o que é real está nos céus ou é animado por espíritos que estão por trás das árvores, para mencionar apenas algumas generalizações amplas de certas escolas de pensamento religioso ou filosófico. Não podemos dizer que nossos sentidos estão fundamentalmente nos enganando.

A Bíblia Hebraica adota uma posição muito diferente disso: defende que aquilo que observamos ao nosso redor é real, passível de ser conhecido, e regulado, ainda que deixando espaço para a interrupção divina. O presente que os hebreus nos dão é um esquema para discernir o funcionamento da realidade natural e permitir que essa realidade nos corrija, o que é um aspecto da ciência que eu gostaria que a teologia adotasse com mais frequência.

Qual é a sua maior esperança para os leitores deste livro?

Não tem nada a ver com evolução ou darwinismo. Meu maior objetivo é levar as pessoas a pensarem seriamente sobre o mundo intelectual dos autores bíblicos e da própria literatura bíblica. Espero que os leitores vejam como esses autores estão abordando mais questões do que podemos perceber superficialmente.

Citando apenas um exemplo: Você não vê na Bíblia a instituição moderna do policiamento. A partir disso, você pode concluir que a Bíblia não fala muito sobre o trabalho da polícia. Na verdade, ela tem muito a dizer [sobre isso], mas é preciso saber como ouvir. De modo geral, quero que os leitores passem de serem instruídos na Bíblia, isto é, de saberem o que está na Bíblia, para serem fluentes em Bíblia ou conhecedores da Bíblia, o que significa serem capazes de estender a maneira bíblica de pensar a todos os tipos de áreas práticas.

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