“Vamos trazer a beleza de volta”. Assim começa a legenda de um vídeo que viralizou no Instagram.

O clipe mostra Katie Calabrese, influenciadora cristã, em um vestido longo e esvoaçante, e na sequência traz uma montagem de imagens: flores sobre as páginas de uma Bíblia aberta, um varal cheio de roupas de linho de cores neutras, uma escadaria com degraus de madeira e paredes com revestimento ripado, uma mulher, cujo rosto não é mostrado, em frente de uma tigela com massa de pão, segurando um bebê no colo.

A legenda cita outras coisas que ela quer trazer de volta: jovens “que saibam preparar uma refeição deliciosa para convidados que chegam de surpresa”, que vão à igreja, que tenham famílias grandes e “que amem seu marido e o elogiem na frente dos outros”.

Calabrese pertence a um grupo on-line de influenciadoras do movimento tradwife [em tradução livre, “esposa tradicional”, expressão que denomina mulheres cristãs defensoras da volta de papéis de gênero ultratradicionais. No Brasil, pode ser comparado ao movimento de influenciadoras que se autodenominam piedosas e/ou produzem conteúdo mais fundamentalista]. Uma tradwife tem sua persona construída com base no resgate de várias expressões “tradicionais” de feminilidade, casamento, vida doméstica e vida familiar. A essência de sua mensagem, que propõe uma volta às origens, soa familiar para aqueles que cresceram em círculos cristãos fundamentalistas, embora seja singularmente empacotada para o Instagram e o TikTok, onde as postagens do movimento tradwife cresceram substancialmente desde 2020.

O conteúdo desse movimento é descaradamente a-histórico, pois se baseia em ideias e imagens de vários períodos, de várias épocas. Algumas tradwives constroem sua marca com uma persona ao estilo da June Cleaver [personagem de um sitcom norte-americano] dos anos 50, usam batom e vestido evasê para fazer o trabalho doméstico. Outras evocam versões imaginárias de Little House on the Prairie [seriado norte-americano que retrata a vida no campo]: vestidos longos, pão caseiro artesanal e propriedades rurais. Algumas postagens fazem uso de ilustrações de casas vitorianas ou de festas do período regencial.

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Diferentemente de outros influenciadores que criam conteúdo sobre educação domiciliar ou sobre um estilo de vida dedicado a cultivar os próprios alimentos [no qual a própria família produz boa parte do que consome], uma influenciadora tradwife faz da fidelidade a algum aspecto da feminilidade “tradicional” um princípio central de sua marca e de sua identidade on-line. É uma distinção sutil, mas nem todas as influenciadoras on-line que usam vestidos longos e assam pães de fermentação natural se enquadram na categoria tradwife.

“A tendência tradwife busca um passado mítico em que todos conheciam seu papel”, disse Emily McGowin, professora associada de teologia no Wheaton College e autora do livro Quivering Families:The Quiverfull Movement and Evangelical Theology of the Family [Famílias Quiverfull: O Movimento e a Teologia Evangélica da Família. A palavra “quiverfull” deriva da ênfase em encher sua “aljava” (quiver, em inglês) com o maior número possível de filhos (veja Salmos 127.5)].

“Vivemos em uma época de confusão e feiura. As pessoas estão procurando por aquilo que é belo e atraente, pelo tempo em que as coisas eram mais simples, embora saibamos que as coisas não eram de fato mais simples.”

Muitas influenciadoras do movimento tradwife também são crentes que colocam sua fé em primeiro plano, defendendo a “feminilidade bíblica” por meio de seus feeds elegantes e meticulosamente pensados. Mesmo as criadoras que não se consideram religiosas estão apresentando um ponto de vista e uma cosmovisão que muitas mulheres cristãs — especialmente as evangélicas — apoiam com entusiasmo.

A ideologia de gênero está no centro do que significa ser uma tradwife. Não é de surpreender que as mulheres evangélicas sejam atraídas por conteúdos que afirmam a diferença de gênero e colocam as mulheres em uma posição de quem serve a família e o marido — como também acontece com os católicos e os mórmons, bem como com alguns agnósticos da Nova Era e os “sem igreja” socialmente conservadores e não ligados a uma religião.

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Evangélicos e mórmons se juntam no espaço do movimento tradwife, e compartilham de uma mesma visão de vida familiar, de casamento, de modéstia e de liberdade religiosa, apesar das diferenças teológicas marcantes.

Quando Hannah Neeleman, mórmon que participa do movimento tradwife, publica um vídeo de sua família de dez pessoas se arrumando para ir à igreja, em sua conta do Instagram intitulada “Ballerina Farm”, os seguidores evangélicos conseguem deixar de lado sua objeção ao tipo de igreja [que a família Neeleman frequenta], porque a visão apresentada tem muito pouco a ver com doutrina e práticas de adoração comunitária.

Pode ser que o fundamentalismo, e não um conjunto específico de crenças cristãs, seja o ponto em comum que funciona como um amálgama para esse império do movimento tradwife.

O colunista David French descreveu o fundamentalismo recentemente como uma postura psicológica marcada por convicção, ferocidade e solidariedade. O conteúdo do movimento tradwife e as comunidades de seguidores que se unem em torno desses influenciadores oferecem essas três coisas: convicção sobre uma forma de ser mulher, esposa e mãe que é mais satisfatória e ordenada por Deus; defesa feroz e persistente de um estilo de vida específico, bem como compromisso perfeccionista com sua estética; e solidariedade entre os milhões de seguidores que curtem, comentam e compartilham [esse tipo de conteúdo].

O separatismo, ou seja, levar uma vida à parte da sociedade, está incluído na proposta que o conteúdo do movimento tradwife oferece, atraindo os cristãos que querem estar “no mundo, mas não ser do mundo”, como as mulheres de Provérbios 31 dos dias de hoje. Essas influenciadoras são modelos que têm apelo para aquelas que querem se vestir, alimentar suas famílias, educar seus filhos ou limpar suas casas de forma diferente do esperado na sociedade do século 21, seja ela americana ou de outras partes ao redor do mundo.

As mulheres que cresceram em contextos religiosos fundamentalistas reconhecem os paralelos no conteúdo proposto pelo movimento tradwife. Ele vende um estilo de vida que elas experimentaram em primeira mão, que já lhes foi vendido por suas igrejas e comunidades religiosas.

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Elas o veem como uma nova maneira de espiritualizar uma feminilidade hiperfeminina e papéis de gênero estritamente definidos. É um conteúdo que elas já viram antes, mas que recebeu uma nova embalagem para uma nova geração.

“Essas imagens de beleza singela e slow living [viver sem correria] não são reais”, disse Abbi Nye, arquivista da Universidade de Wisconsin-Milwaukee, que cresceu como a mais velha de nove filhos em uma igreja pentecostal Latter Rain, no norte do estado de Nova York.

Antes do Instagram, segundo Nye destacou, havia revistas voltadas para famílias cristãs conservadoras, como Above Rubies e Vision Forum (da organização de mesmo nome). Suas histórias nostálgicas e sentimentais incentivavam as mulheres a pensarem em ficar em casa, dedicarem-se à educação domiciliar, à jardinagem e a se manterem aptas a engravidar.

Nye disse que as famílias de sua igreja estavam tentando viver essa vida que as influenciadoras do movimento tradwifemodelam no mundo digital, mas que isso colocou as mulheres e as crianças em uma posição vulnerável. Praticamente todos estavam lutando para pagar as contas e sobreviver.

“O conteúdo do movimento tradwife que vemos on-line vem de pessoas com muito dinheiro. Em minha comunidade, a maioria das pessoas vivia abaixo da linha da pobreza”, disse Nye, que dirige uma rede de defesa para sobreviventes de abuso em sua comunidade religiosa. “Isso me deixa irada, pois sei que essa imagem que está sendo apresentada é falsa.”

Reportagens recentes sobre influenciadoras do movimento tradwife observaram que os porta-estandartes dessa tendência são bastante ricos. Neeleman é nora do fundador da JetBlue. A Ballerina Farm é um negócio lucrativo, e a conta tem quase 9 milhões de seguidores no Instagram, onde você pode ver Neeleman cozinhar, ordenhar vacas ou competir no recente concurso Mrs. World [que pode ser traduzido literalmente por ‘Senhora mundo’]

Os influenciadores desse movimento que não têm a mesma riqueza que Neeleman ainda podem tentar projetar a imagem de uma vida pefeita e de um lar idílico. A postagem de Calabrese sobre “trazer a beleza de volta” é uma montagem feita de imagens que ela encontrou no Pinterest (como ela mesmo reconhece na legenda).

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A autora Tia Levings, que aparece na recente série documental Shiny Happy People [Pessoas felizes e brilhantes], diz que o conteúdo do movimento tradwife é apenas uma nova encarnação da mídia e dos livros que a levaram à vida “trad” [estilo de vida tradicional], em meados dos anos 90.

Levings frequentou igrejas e conferências onde aprendeu sobre os perigos das vacinas e dos pediatras, a importância das conservas para montar uma despensa para o fim dos tempos e como encomendar kits de parto e remédios à base de ervas pelo correio. Eram distribuídos revistas, catálogos e panfletos caseiros para ajudar as mulheres a imaginarem uma existência mais pura e afastada do mundo.

A edição de abril de 2009 da Above Rubies traz uma matéria de duas páginas sobre pão de fermentação natural (um dos pilares das influenciadoras do movimento tradwife dos dias de hoje) e um artigo intitulado “How to Fight Like a Woman” [De que maneira lutar como uma mulher], que exorta mulheres a “chorar como uma guerreira” porque “as lágrimas são exclusivas das mulheres e levam Deus a lutar”.

O artigo que traz a receita do pão de fermentação natural poderia tranquilamente ser copiado da legenda de um reel qualquer do Instagram que elogiasse “pão caseiro, artesanal, orgânico, nutritivo, feito com massa de fermentação natural e grãos ancestrais”, livre de fitatos que “tornam o pão muito mais difícil de digerir”, mas que também alerta: “se você tiver mais de 30 anos e não tiver um metabolismo veloz como o Ligeirinho, não coma mais de dois pedaços por vez”.

A diagramação da Above Rubies não tem o refinamento estético do atual conteúdo viral do Instagram, mas a revista está claramente tentando alcançar as mulheres com as mesmas mensagens: O mundo ao seu redor — a comida, as escolas, a mídia — não é como deveria ser. Você, como mulher, pode tornar sua casa diferente.

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“A mensagem não é diferente”, disse Julie Ingersoll, professora de estudos religiosos da Universidade do Norte da Flórida. “A mídia é diferente, e isso tem algum impacto. Mas quando se olha para a mídia anterior, podemos reconhecer suas raízes.”

A família de Rebekah Hargraves passou a frequentar uma igreja reformada integrada à família, perto de Chattanooga, no Tennessee, durante sua adolescência, e logo foram conquistados pelos catálogos e pela mídia da Vision Forum.

Hargraves e seu pai participaram de conferências para pais e filhas, nas quais os homens falavam sobre o valor de ser uma filha dona de casa e de abrir mão do sonho de ter uma carreira profissional, a fim de cumprir uma vocação mais elevada.

“Minha família estava no ponto para ser colhida, em alguns aspectos”, disse Hargraves, hoje escritora e blogueira adepta da educação domiciliar para seus dois filhos. “Minha mãe tinha essa imagem sonhadora de volta ao passado. Meus bisavós tinham uma fazenda. Todos nós tínhamos uma visão romantizada desse estilo de vida.”

Hargraves foi educada no sistema de educação domiciliar, mas a vida doméstica começou a ficar diferente, quando a família adotou os ideais defendidos por livros como So Much More [Muito mais], um guia de sobrevivência para mulheres jovens que vivem em uma “cultura selvagemente feminista e anticristã”.

“Passei do pensamento ‘Puxa, não seria legal usar vestidos longos?’ para a crença de que era pecado não usá-los”, disse Hargraves.

Antes de entrar para a nova igreja, ela sonhava em trabalhar no mundo editorial — mais especificamente para a Lifeway, a editora da Convenção Batista do Sul. Mas a nova visão de feminilidade que lhe fora apresentada parecia exigir que ela deixasse esse sonho de lado.

Levings, cujos pais eram empresários do meio-oeste americano, cresceu acreditando que poderia ter uma carreira e ser dona de casa; porém, pouco depois que se tornou mãe, foi conquistada pela ideia de que dedicar sua vida ao lar e à família era a sua maior vocação. Ela acredita que o conteúdo do movimento tradwife, tanto o antigo quanto o novo, oferece a muitas mães cristãs algo que elas desejam desesperadamente: reafirmação e reconhecimento.

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“As mães estão exaustas; então, a beleza estética é parte do que ajuda a trazer as mulheres de volta para o lar. Por que não fazer jardinagem e potes de conserva? E acontece que tudo isso agrada aos olhos”, disse Levings. “Esfregar o chão se torna um ato sagrado. Você está cumprindo a Grande Comissão por meio da maternidade.”

Para Levings, romantizar as tarefas domésticas mundanas parecia uma forma de honrar e de elevar esse trabalho à condição de única opção digna para as mulheres. O senso de propósito justo e convicção eram poderosos. Era sua maneira de participar do projeto dominionista de ganhar o mundo para Cristo. E, por um tempo, isso manteve Levings comprometida com seu papel.

“Você sente que está fazendo uma escolha positiva e proativa em favor de sua casa e de sua família”, disse Levings. “Mas eu estava tão isolada e sozinha em minha pequena casa no subúrbio. O resultado de tudo isso foi solidão.”

As influenciadoras cristãs do movimento tradwife mostram seus estilos de vida, suas famílias e seus lares como fonte de inspiração, mas também como prova de que o compromisso com a versão delas de feminilidade “tradicional” produz coisas boas e belas. O conteúdo é cativante; e assim deve ser. A implicação que está por trás é que esse estilo de vida está de acordo com o projeto e a intenção de Deus para as mulheres e suas famílias. A combinação entre estética e missão espiritual torna essa mensagem especialmente urgente e potente.

“Estávamos muito conscientes de estar provando alguma coisa”, disse Abbi Nye, acrescentando que a esposa de seu pastor instruía as famílias a verem sua conduta e sua aparência como um testemunho para o mundo. “A razão pela qual vestíamos roupas bonitas era para tornar Jesus atraente para o mundo. Tínhamos que provar que o ensino domiciliar era o melhor, que nossa igreja era a melhor, que esse era o melhor caminho.”

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Sua missão incluía provar não só a superioridade de seu estilo de vida separatista, mas também seu compromisso com papéis de gênero e hierarquia claramente definidos. O feminismo era o inimigo, assim como muitas adeptas do movimento tradwife nos dias de hoje dizem oferecer uma alternativa ao feminismo fracassado das “chefonas”.

A convicção, a ferocidade e a solidariedade que Nye, Hargraves e Levings experimentavam acabaram dando lugar à percepção de que uma visão abstrata de feminilidade tradicional e de vida familiar tradicional não cumpria as promessas de uma vida bela, confortável e pacífica. Isso também começou a desmoronar, quando elas se depararam com mulheres cristãs que estavam fazendo as coisas de modo diferente.

Aos 17 anos, quando Hargraves se matriculou em uma aula de dança de salão para estudantes do sistema de educação domiciliar, ela ficou chocada com uma colega que usava shorts. “Mas ela tinha uma luz sobre si”, disse Hargraves. “E eu não conseguia entender como alguém poderia ter Cristo e usar shorts.”

Esse encontro abalou sua confiança na retidão e na superioridade do estilo de vida de sua família, e hoje ela o vê como o início da revelação de seu compromisso com uma vida “tradicional”.

“Isso plantou em mim uma semente de dúvida. E me deixou desconfortável, mas eu não podia ignorar. Pensei: ‘Talvez eu esteja errada, algo não está batendo’”.

Para algumas mulheres cristãs, o modelo do movimento tradwife parece oferecer uma maneira ideal de viver a feminilidade bíblica, mas a orientação fundamentalista de grande parte do conteúdo implica que há um ideal, aquele algo que é o “melhor de Deus” para as mulheres.

Até mesmo os conservadores que atribuem certos papéis de gênero como bíblicos têm advertido contra apresentar ou ver a estética do movimento tradwife como o padrão cristão.

“Evidentemente, não há nada de errado em viver em uma fazenda, fazer seu próprio pão de fermentação natural, cultivar os próprios alimentos e todas essas coisas maravilhosas; porém, como isso se tornou uma tendência no TikTok e nas mídias sociais, infelizmente algumas pessoas cometeram o erro de confundir essa chamada vida tradicional e o fato de ser uma esposa tradicional com ser uma esposa bíblica”, disse a comentarista Allie Beth Stuckey, na conferência Founders, que aconteceu em março. “Há padrões bíblicos, é claro, para os quais as mulheres são chamadas, mas eles não são padrões definidos pelas mídias sociais.”

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Os defensores dos criadores de conteúdo dizem que as tradwives estão se expressando, construindo negócios e publicando conteúdo que serve ao seu público. Ainda assim, o conteúdo das tradwives, impulsionado pela fé, faz afirmações e implicações significativas sobre a teologia de gênero.

“Nossa teologia de gênero é muitíssimo importante”, disse McGowin. “Mas quando Jesus prega o evangelho, ele não fala sobre como estamos representando nosso gênero.”

Embora o evangelho que encontramos nos conteúdos do movimento tradwife afirme oferecer às mulheres um caminho diferente e melhor, quem já viveu suas versões anteriores sabe que o fundamentalismo e o legalismo podem prometer liberdade, mas acabam com uma visão que, embora bonita, é, em última análise, estreita e enclausurante.

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