A gratidão anda em alta nos dias de hoje.

Desde meados dos anos 2000, quando foram lançados os escritos de Robert Emmons, adepto da psicologia positiva, surgiu uma verdadeira indústria em torno do estudo da gratidão. Vários projetos de pesquisa, edições especiais de periódicos acadêmicos, livros de referência e monografias acadêmicas inteiras foram dedicados ao tópico. Existem também centenas de periódicos, aplicativos de celular e podcasts que oferecem conselhos práticos sobre como viver com gratidão.

Os cristãos devem receber tudo com alegria. Afinal, devemos ser um povo de coração grato, talvez mais grato do que todos. E se levarmos em conta a melancolia da vida pós-pandêmica, toda essa amarga polarização política que vivemos e a cáustica cultura atual do cancelamento — seria difícil imaginar um momento melhor para duplicarmos o valor da gratidão.

Para os cristãos, é claro, a gratidão deve começar e terminar pela nossa gratidão a Deus. E, no entanto, muitos entre nós não experimentam isso com o tipo de frequência, de intensidade e de duração que pareceriam apropriados, considerando-se o quão extraordinários são os benefícios de Deus.

Por que lutamos para ser gratos a Deus com consistência, mesmo quando acreditamos — ou pelo menos dizemos acreditar — que Deus é nosso benfeitor supremo e incomparável?

Um dos problemas é a nossa desatenção. Podemos saber, em um sentido abstrato, que Deus é o benfeitor supremo; porém, até começarmos a prestar atenção para onde estão indo as dádivas que Deus, provavelmente não sentiremos gratidão. Outra questão é o ressentimento. Sabemos que muitas vezes Deus é bom para nós; mas também ficamos bravos, quando Deus não nos dá o que queremos, e, então, reprimimos nossa gratidão.

Prestar mais atenção e lidar com nosso ressentimento são coisas cruciais, se quisermos crescer em nossa gratidão a Deus. Contudo, mesmo quando tentamos ficar atentos e mesmo quando não ficamos com raiva de Deus, ainda assim pode ser difícil termos uma postura de gratidão consistente.

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O movimento da psicologia positiva geralmente pressupõe que sabemos de antemão pelo que somos gratos, e tudo o que falta é ficarmos atentos e nos esforçarmos. Entretanto, a gratidão a Deus não é o tipo de coisa que brota naturalmente no coração humano.

Pense nas características que realmente acionam sua resposta espontânea de gratidão. Sentimos gratidão de forma mais espontânea e intensa quando um benfeitor, de maneira imprevisível e a um grande custo pessoal, concede a nós um benefício que satisfaz algum desejo que tínhamos.

No entanto, a benevolência de Deus para conosco estende cada parte deste contexto comum de gratidão até um ponto de ruptura. Pois, muito embora possa ser inesperada a forma que se manifesta a bondade de Deus para conosco, ele não tem como não ser onibenevolente, por sua própria natureza — ao contrário de nossos amigos e cônjuges. Em outras palavras, por que deveríamos nos surpreender quando Deus nos abençoa?

E não apenas isso, mas ao contrário de nossos entes queridos humanos, Deus não é limitado por tempo, energia, dinheiro ou conhecimento — então, em que sentido realmente custa para Deus ser generoso conosco?

Também podemos criticar o fato de que Deus pode nos dar alguma dádiva, mas ainda assim manter seu direito sobre ela. Por exemplo, Deus pode curar nosso câncer amanhã e simplesmente permitir que a doença volte daqui a seis meses.

Como mostra a vida de Jó, até mesmo as bênçãos de Deus podem, a qualquer momento, transformarem-se em tragédias. “O Senhor o deu, o Senhor o levou”, como diz Jó (1.21). Isso significa que, se nossa gratidão for apenas do tipo “conte suas bênçãos”, com certeza acabaremos amaldiçoando a Deus, exatamente como a esposa de Jó queria.

Entretanto, o que mais nos confunde é o fato de que, às vezes, Deus pode nos dar o que não desejamos: “dádivas” que ninguém deseja — como provações e tribulações, as quais, segundo Paulo diz, Deus usa para fazer crescer nossa fé.

Quando consideramos a gratidão a Deus apenas no contexto de experiências estereotipadas de gratidão interpessoal, acabamos nos concentrando em suas “bênçãos cotidianas” — como uma boa saúde, um bom emprego, uma família bonita. Essa mentalidade, porém, corre o risco de transformar Deus em uma máquina cósmica de venda automática, cujo papel principal é nos dar o que queremos.

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Ao contrário disso, Paulo dizia que aprendeu a estar grato e contente em “toda e qualquer circunstância” (Filipenses 4.11) — e falava de seu sofrimento por Cristo (1.29-30; 3.10) no mesmo fôlego. Isso revela uma diferença marcante entre os bens do reino de Deus e os bens deste mundo.

Paulo ainda encoraja os cristãos em Filipos a pensarem nestas qualidades como dádivas: “Finalmente, irmãos, tudo o que for verdadeiro, tudo o que for nobre, tudo o que for correto, tudo o que for puro, tudo o que for amável, tudo o que for de boa fama, se houver algo de excelente ou digno de louvor, pensem nessas coisas.” (4.8).

Portanto, a gratidão bíblica é moldada por aquilo que Deus considera amável, verdadeiro, nobre, justo e digno de louvor. Como João Crisóstomo explica em seu sermão sobre Filipenses: “O que significa ‘tudo o que for amável’? [Significa o que for] Amável para o que é fiel, amável para Deus.”

Essas dádivas do reino nos dão tudo o que precisamos para sermos amigos de Deus para sempre — porém, elas muitas vezes são completamente diferentes dos tipos de bênçãos que o mundo valoriza. Jesus fala disso, quando louva a Deus Pai por ocultar o reino dos céus dos “sábios e cultos” e revelá-lo aos “pequeninos” (Mateus 11.25).

Frequentemente, as dádivas de Deus não são simples nem diretas. Na verdade, elas podem nos desestabilizar e revelar nossa fragilidade básica, nosso vazio, nossas carências e nossa desobediência. Por causa disso, cultivar gratidão a Deus é algo que exige empenho. Como Jen Pollock Michel argumenta em Teach Us to Want, isso faz parte de um processo mais amplo, pelo qual aprendemos a desenvolver um “desejo santo” alinhado com Cristo.

Em um sermão de Natal, o teólogo Samuel Wells, certa vez, pregou que Deus era o materialista por excelência, porque ele reverte nossos desejos mesquinhos por brinquedos e bugigangas em um anseio santo pelo Deus conosco no Jesus encarnado, material.

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Quando Paulo diz “Tudo o que fizerem, […] façam-no em nome do Senhor Jesus, dando por meio dele graças a Deus Pai” (Colossenses 3.17), ele está fundamentando a gratidão para além da dádiva da criação, e na dádiva da nossa nova vida em Jesus Cristo. Como observa Michael Gorman, Paulo ensinou que toda a vida cristã deve ser renovada “à imagem de Cristo”, e aí se inclui nossa gratidão pelas dádivas não convencionais de Deus.

Somente uma vida transformada — uma vida que Paulo descreve como estar “em Cristo” (2Coríntios 5.17) — pode criar em nós um novo conjunto de desejos eternos e uma disposição diferente para a gratidão.

Portanto, isso não significa que os cristãos devam ser mais gratos do que a média das pessoas, mas sim que seguir a Jesus nos permite sermos gratos pelos dádivas inesperadas de Deus — as quais podem surpreender, entristecer e confundir a gratidão de um mundo incrédulo e até nos deixar perplexos em nossa carne.

Assim, a gratidão cristã é a marca de uma nova vida, capacitada pelo Espírito à medida que formos treinados e transformados — às vezes de maneira dolorosa — em pessoas com estranhos desejos e que conseguem receber e se deleitar com estranhas dádivas concedidas de estranhas maneiras por um Deus incomum.

Esta é uma maneira totalmente nova de estar no mundo. Como diz Barth, “a gratidão deve ser entendida não apenas como uma qualidade e uma atividade, mas como o próprio ser e a própria essência” do cristão.

Em sua essência, a gratidão cristã é, antes de qualquer coisa, aprendermos a receber de Deus a nós mesmos. E o próprio cristianismo é um treinamento continuado sobre como ser grato por quem somos em nosso âmago: criaturas carentes que vivem pela graça. Isto é uma dádiva — embora seja uma dádiva difícil de se receber com gratidão.

Quando aprendemos a receber nossas vidas como dádivas de Deus, começamos a ver com mais clareza o que Deus considera louvável. Isso, por sua vez, nos permite valorizar uma nova forma de ser gratos, bem como identificar e apreciar o que é excelente e louvável sob uma luz inteiramente nova.

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Tradução por Mariana Albuquerque

Edição por Marisa Lopes

Kent Dunnington é professor de filosofia na Biola University, em La Mirada, Califórnia.

Benjamin Wayman é titular da cátedra James F. e Leona N. Andrews em unidade cristã, na Greenville University, em Greenville, Illinois.

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