Na praça de São Petersburgo, um jovem chamado Fiódor Dostoiévski tremia na neve, lado a lado com outros detentos, todos presos por pertencer a um círculo literário acusado de traição à pátria.

Um sacerdote que carregava uma cruz conduzia os condenados em procissão, organizando-os em fileiras, enquanto a sentença era lida: morte por fuzilamento. No último segundo, porém, chegou um cavaleiro com uma mensagem do czar, previamente combinada: em vez de execução, Nicolau “misericordiosamente” comutara suas penas por trabalhos forçados.

Ao embarcar no trem de condenados que ia para o campo de trabalho forçado na Sibéria, Dostoiévski recebeu um exemplar do único livro que tinha permissão para ler na prisão: o Novo Testamento. Nos quatro anos de encarceramento que se seguiram, ele viria a considerar as injustiças da Rússia do século 19 à luz da misericórdia de Cristo.

Dostoiévski procurou entender como a misericórdia restaura os corações humanos — e, na verdade, a criação toda — à imagem justa de Deus. Ele escreveu: “Existem almas que, em sua estreiteza, culpam o mundo inteiro. Mas inunde uma alma como essa de misericórdia, dê-lhe amor, e ela amaldiçoará o que fez, pois há muitas sementes do bem nela. A alma se expandirá e contemplará o quão misericordioso é Deus e quão belas e justas são as pessoas”.

A necessidade de misericórdia é tão relevante hoje quanto era naquela realidade de Dostoiévski — mas pode ser difícil oferecer misericórdia em um mundo digno de julgamento.

Quando nossos olhos abrem-se para o reino de Deus, reconhecemos injustiças no mundo que antes não nos ocorriam. Ansiosos pela ordenação correta da vida, ficamos irritados com a condição caída da humanidade. Ficamos inquietos, talvez indignados ou mesmo enfurecidos pelas formas de maldade e opressão que vemos ao nosso redor.

Como resultado, a ira muitas vezes pode ser o pecado que assedia aqueles que anseiam por justiça. “Uma grande indignação se apoderou de mim”, diz o salmista, “por causa dos ímpios, que abandonam a tua lei” (Salmos 119.53, ESV).

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Esta indignação brota de uma fonte legítima. Quanto mais reconhecemos o que é verdadeiro, bom e belo — e quanto mais ansiamos por tudo isso — maior é nossa inclinação para ficarmos bravos com o que é falso, mau e feio. Quanto mais andamos na luz, mais nos tornamos naturalmente perturbados pela treva moral (Tito 1.15; 1Pedro 4.1-6).

Isso é certo e precisamente verdadeiro quanto à ira dirigida contra o mal — contra o tirano que ataca pessoas inocentes, contra os golpistas que fazem de presa os idosos ou contra figuras de autoridade supostamente confiáveis que abusam de crianças. Esses exemplos de “ira justa” refletem o coração de Deus, uma indignação santa que se recusa a permitir que o mal prevaleça. E, no entanto, nossa ira sempre será imperfeita, porque nunca consegue captar a plenitude da pureza de Deus. De fato, como diz o Senhor: “Minha é a vingança; eu retribuirei” (Romanos 12.19).

A ira amarga e o antagonismo à escuridão — aquilo que alguns hoje podem chamar de o ultraje da cultura do cancelamento — nunca devem se tornar nosso modo normal de agir como cristãos. Em vez disso, Deus nos chama a buscar a redenção, “pois a ira do homem não produz a justiça de Deus” (Tiago 1.20). É a bondade de Deus que nos leva ao arrependimento (Romanos 2.4), e “a misericórdia triunfa sobre o juízo” (Tiago 2.13). Afinal, “a sabedoria que vem do alto é antes de tudo pura; depois, pacífica, amável, compreensiva, cheia de misericórdia e de bons frutos, imparcial e sincera” (Tiago 3.17).

Essa era precisamente a mensagem da obra clássica de Dostoiévski, Os Irmãos Karamazov, na qual o personagem principal, Ivan, representa a rancorosa punição e retribuição da “justiça” do mundo — que se opõe implacavelmente ao evangelho da misericórdia de Cristo. Nas próprias palavras de Dostoiévski, esse espírito de vingança “contrasta flagrantemente com o evangelho de Cristo, evangelho de amor que a tudo reconcilia e perdoa, e com a esperança de misericórdia infinita para o pecador que se arrepende”. Para o romancista russo, é isso que distingue a Cidade de Deus da Cidade dos Homens: a concessão da misericórdia divina.

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Considere também o personagem Javert, da obra Les Misérables, de Victor Hugo, o inspetor de polícia cuja estreita interpretação da justiça tornou-se uma arma. Impulsionado por um compromisso farisaico com a letra da lei, ele não conseguia ignorar a menor das infrações. Javert não conseguia entender que a lei é sempre um meio para um fim maior — isto é, para a redenção — e não um fim em si mesma.

Aleksandr Solzhenitsyn acerta essa tecla, quando escreve: “Uma sociedade que se baseia na letra da lei e nunca alcança nada mais elevado está tirando muito pouca vantagem do alto nível das possibilidades humanas”. Pior ainda, tal sociedade se priva de sua mais profunda necessidade de misericórdia.

Em seu livro The Beatitudes through the Ages [As bem-aventuranças através dos tempos], Rebekah Eklund faz essa conexão a partir do ensinamento de Ambrósio de Milão (339–397), que promoveu a misericórdia como o fluxo natural e necessário da justiça. Citando Salmos 112.9, ele escreve: “dá aos pobres; a sua justiça permanece para sempre.” Da mesma forma, Agostinho (354–430) via as duas coisas em um relacionamento orgânico: “A maneira como você trata o seu mendigo [que está à sua porta] é a maneira como Deus trata o dele”.

Deus é cheio de misericórdia e concede essa plenitude a seus filhos. Não é por acaso que, quando o Senhor da glória apareceu a Moisés, no monte Sinai, e revelou seu caráter divino, ele escolheu dizer de si mesmo: “Senhor, Senhor, Deus compassivo e misericordioso, paciente, cheio de amor e de fidelidade” (Êxodo 34.6).

É impressionante. De todas as qualidades que Deus poderia ter enfatizado — sua santidade, sua soberania ou seu poder onipotente — ele escolheu destacar seu terno coração compassivo. Assim como a misericórdia tem importância central para Deus, também deve ter para nós. “Sejam misericordiosos”, diz Jesus, “assim como o Pai de vocês é misericordioso” (Lucas 6.36).

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Somos misericordiosos não porque Deus iniciou o processo e depois nos deixa terminá-lo pelo poder de nossa vontade. Em vez disso, a cada passo do caminho, Deus dissolve nossa autoconfiança e alimenta nossa fé, até o desejarmos acima de tudo. É um projeto de misericórdia, no qual Cristo diz continuamente: “Venham a mim, todos os que estão cansados e sobrecarregados, e eu lhes darei descanso” (Mateus 11.28). O Senhor nos conduz com “cordas de bondade” e com “laços de amor” (Oseias 11.4).

E quando experimentamos verdadeiramente a misericórdia de Deus, somos levados a partilhá-la com os outros.

Certa vez, perguntei a minha amiga Cecilia Horn, uma mulher piedosa e evangelista fervorosa, como ela cultiva o entusiasmo em compartilhar as boas novas. Jamais esquecerei sua resposta: “Por muitos anos, estive perdida e sem esperança, como uma prisioneira vivendo em uma caverna escura. Então, um dia, Deus me chamou das sombras para o brilho do sol do meio-dia. Imediatamente olhei para o céu e comecei a piscar, tentando ganhar perspectiva da maravilha da misericórdia de Deus. Continuo a piscar em grato maravilhamento que aprofunda minha fé e me compele a compartilhar as boas novas com outros.”

A lembrança de nossos dias passados de solidão e vergonha — quando estávamos afastados de Cristo e éramos estrangeiros quanto a suas promessas divinas, “sem esperança e sem Deus no mundo” (Efésios 2.12) — dilata os olhos de nosso coração e cultiva uma apreciação mais profunda pelo dom da misericórdia.

Com a igreja global clamamos Kyrie eleison, “Senhor, tenha misericórdia!”. Este é o ponto de partida e o fundamento do nosso chamado — pois, antes de podermos mostrar misericórdia para com os outros, nós mesmos devemos encontrá-la.

Adaptado do capítulo 5, “The Face of Mercy,” da obra The Upside Down Kingdom: Wisdom for Life from the Beatitudes, da autoria de Chris Castaldo, publicada pela Crossway.

Chris Castaldo (PhD, London School of Theology) é o pastor sênior da New Covenant Church, em Naperville, Illinois.

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