Nota da edição em português: Este artigo foi originalmente escrito em 1970 por Elisabeth Elliot, mas ainda traz reflexões importantes para os dias de hoje.

Uma mulher que veio almoçar em minha casa, num dia de verão, foi embora determinada a ler alguns de meus livros. Ela começou, infelizmente, por um romance (o único romance que escrevi), e depois me escreveu uma carta muito gentil, na qual me agradecia pelo almoço e dizia que tinha lido o livro, mas gostaria que eu tivesse “acrescentado” algo mais a ele. Ela achava que o livro deveria terminar, segundo suas palavras, com uma “compreensão mais profunda e sem decepções com Jesus”.

Eu sei exatamente como ela se sente. Muitos de nós gostaríamos de “acrescentar” esse algo mais. Adoraríamos poder nos levantar na congregação dos justos e dizer: “Nunca me decepcionei com Jesus”.

O problema é que o livro precisava ser fiel à vida, e descobri que a vida me conduz a muitos becos sem saída, a lugares sombrios e a selvas sem trilhas, lugares onde o que eu gostaria de ver acrescentado simplesmente não o é, e as explicações que morro de vontade de encontrar jamais aparecem.

Além do mais, encontro coisas dessa forma não apenas em minha própria experiência de vida, mas também em descrições disso que estão registradas na Bíblia, a qual é precisamente verdadeira em relação à vida. Todos nós já ouvimos argumentos dizerem que, quando o pecado é retratado na Bíblia, ele também é claramente identificado e punido. Engoli isso por muitos anos, mas, um belo dia, decidi verificar essa alegação e descobri que não era verdade. Existem alguns atos horrendos registrados no Antigo Testamento, dos quais as pessoas aparentemente se safaram (a história da concubina do levita, em Juízes 19, é um exemplo). Existem incontáveis episódios que falam de mentira, trapaça e esquemas egoístas. Há fracassos, derrotas, esperanças frustradas, mortes — e muitas histórias terminam bem longe de serem satisfatórias. Nada lhes é “acrescentado”.

Ora, mas o Novo Testamento foi acrescentado. Ele lança uma grande torrente de luz sobre o Antigo Testamento e descreve a esperança do mundo, a redenção por Cristo e tudo o que isso significa. Mas, mesmo no Novo Testamento, na vida do próprio Jesus, que veio mostrar em carne como Deus é, há ocasiões em que as pessoas se decepcionam. De fato, elas estavam especificamente desapontadas com Jesus.

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Os sábios que vieram encontrar o rei recém-nascido ficaram perplexos, quando chegaram ao palácio do rei e souberam que não fora lá que o nascimento tinha ocorrido. Deve ter sido embaraçoso, confuso e decepcionante para eles.

Quando tinha doze anos, Jesus magoou sua mãe por ter saído sozinho, sem falar com ela. Depois de vários dias de viagem e de preocupação agonizante, seus pais o encontraram, e ele tinha uma explicação pronta, mas Maria não pôde conter uma repreensão. “Por que você nos tratou assim?” Foi a reação de uma mãe humana. Como poderia ela tê-lo entendido?

Muitas vezes imaginei coisas que devem ter acontecido, quando Jesus era aprendiz de carpinteiro. Um homem deixa um assento de madeira para consertar, mas encontra a oficina vazia, quando volta para pegar sua encomenda. Jesus mais uma vez foi atrás de cuidar dos negócios do Pai. Posso facilmente imaginar a exasperação de José, quando seu [uso do] tempo não coincidia com o de Jesus.

Os Evangelhos contam sobre certos momentos em que os discípulos procuraram por Jesus em todos os lugares, pois estavam precisando desesperadamente dele, e não puderam encontrá-lo. Multidões o seguiam, cercavam-no, imploravam e bajulavam-no, até que ele não tinha mais tempo nem para comer. Jesus deve ter desapontado e enfurecido alguns dos que integravam essas multidões.

É uma questão simples para nós, hoje, olhar para o registro das Escrituras e ver que ninguém deveria ter ficado desapontado. Mas a verdade é que muitos ficaram desapontados, pois eram humanos.

O que os amigos de João Batista pensaram, quando contaram a Jesus sobre a prisão de João e o perigo iminente de ele ser executado, e Jesus não fez absolutamente nada a respeito, exceto enviar uma mensagem estranha? Ele não foi sequer visitar João na prisão, muito menos libertá-lo. A palavra que ele enviou deve ter parecido enigmática, na melhor das hipóteses, se não uma zombaria, naquelas circunstâncias: “feliz é aquele que não se escandaliza por minha causa” (Mateus 11.6). Mas o Filho de Deus sabia que essa mensagem poderia ser confiada a João, em quem confiava, além disso, para morrer o que parecia ser uma morte sem sentido — em que uma jovem dançarina tola e sua mãe perversa e cheia de intrigas manipularam tudo.

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Decepcionar é deixar de satisfazer esperanças ou expectativas. Somos humanos e, portanto, ignorantes, cegos, egoístas. Como podemos deixar de nos sentir desencorajados, quando Deus não age de acordo com nossas expectativas? Muitos homens nas Escrituras ficaram desapontados e bradaram suas queixas contra Deus — Jó, por exemplo, em linguagem quase insuportavelmente vívida; e o salmista, que repetidamente perguntava: “Até quando, ó Senhor?” “Esqueceu-se Deus de ser misericordioso?”

Que alívio é para mim encontrar esses clamores humanos no livro inspirado! Sei que não estou sozinha em minhas decepções. Não fui deixada em um deserto uivante e desolado, enquanto todos os que realmente amam a Deus ascendem firmes a alturas reluzentes, muito além da minha visão. Jonas sentiu ervas daninhas sobre sua cabeça. Pedro começou a afundar. Jó sentiu que havia sido abandonado em um lugar de chacais, e disse isso — ele perguntou a seus amigos, aqueles “consoladores” que sabiam as respostas para os seus problemas: “Vocês vão falar enganosamente a favor dele [de Deus]? (Jó 13.7)

Portanto, para ser bem sincera, não posso dizer que nunca fiquei desapontada. Se eu pudesse dizer isso, seria onisciente, ou ao menos uma profetisa, pois as coisas aconteceriam exatamente conforme o esperado e o aguardado.

A gentil mulher que me escreveu aquela carta queria que eu, como autora, fosse onipotente e consertasse tudo. Por que eu não poderia acrescentar coisas, para que tudo saísse perfeito? Porque eu não sabia o suficiente. Minha heroína não sabia o suficiente, e, nesse aspecto, eu estava tentando ser fiel à vida. É na vida, no mundo real, aqui embaixo, onde as coisas dão e não dão certo, que o justo deve viver pela fé. Quando ficamos sinceramente desapontados com a maneira como o Deus em quem confiamos lidou com as coisas, quando o que aconteceu não foi nada do que queríamos — é então que declarações como “Não seja feita a minha vontade, mas a tua” têm um significado poderoso. Que sólida confiança o velho João Batista teve, enquanto estava em correntes — cativo, condenado, solitário, abençoado, mas não ofendido.

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Elisabeth Elliot foi escritora e palestrante, autora de livros como Através dos Portais do Esplendor e Uma Vida de Obediência. Era formada pelo Wheaton College e foi missionária.

Tradução por Mariana Albuquerque

Edição por Marisa Lopes

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