Nota da edição em português: este artigo foi publicado originalmente em 2021, mas traz reflexões importantes para os nossos dias atuais.

A maioria de nós evita intencionalmente pensar na morte. A professora de antropologia da Universidade Brandeis, Anita Hannig, escreve que a maioria dos americanos rotula essas conversas sobre a morte como “mórbidas” e “tenta evitá-las — assim como a própria morte — o máximo possível”.

Bem lá no fundo, todos sabemos que vamos morrer, mas isso não é o tipo de coisa que alguém diga em voz alta em uma festa.

Assim, na maioria dos anos, a tarefa do pregador na Quarta-feira de cinzas parece um pouco transgressora e pesada. Oferecemos nosso lembrete anual: Não fujam de verdades incômodas. Somos mortais. Nenhuma quantidade de riqueza, de coisas para fazer ou de pensamento positivo pode mudar isso. Somos pó e ao pó voltaremos.

Mas 2021 não é como a maioria dos anos.

Durante esta pandemia global, o número de mortes é manchete em todos os jornais, enquanto contabilizamos aqueles que morreram de COVID-19 — até agora, quase meio milhão de pessoas. Usamos máscaras, ficamos em casa e evitamos aglomerações para escapar de ainda mais mortes. Nossas vidas e rotinas diárias foram moldadas pelo poder da morte de maneiras muito mais óbvias do que muitos de nós já experimentamos.

Este ano, em vez de proclamar a morte a fiéis preocupados com outros assuntos, ela parece ser continuamente lançada à nossa vista. A maioria de nós — apesar de nossas tentativas — não pode negar a verdade imponente e terrível de que a morte nos ronda e está vindo ao nosso encontro. Temos vivido uma interminável Quarta-feira de cinzas, de modo que lembrar as pessoas de que elas vão morrer parece algo extraordinariamente redundante.

Mas a mensagem verdadeiramente contracultural da Quarta-feira de cinzas não é que vamos morrer. É que, embora a morte seja o que nos aguarda, o desespero não é algo inevitável. Ao nomear o horror absoluto e intragável da morte, nós, como igreja — sem recorrer a banalidades nem a negações açucaradas — podemos proclamar a verdadeira esperança em meio a ela.

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Em nosso país, há uma indignação generalizada (e justificada) com a má gestão política da crise da COVID-19. Ainda assim, a Quarta-feira de cinzas nos lembra que nenhum político e nenhum partido será capaz de resolver completamente o problema da morte. Parafraseando Flannery O'Connor, no final das contas, a morte não é um problema a ser resolvido, mas um mistério a ser enfrentado.

Em sua regra monástica, Bento de Núrsia descreve o que chama de “instrumentos para as boas obras” e instrui seus monges a “lembrarem-se todo dia de que vão morrer”. O objetivo de lembrar da morte nesse contexto não é deleitar-se com ela, muito menos fazer dela uma motivação. A questão é que, ao aceitar nossa mortalidade, em vez de negá-la, de sentimentalizá-la ou de fugir dela, colocamos um fim na insana tarefa de viver apenas para nos mantermos vivos.

Para todos nós, relembrar a inevitabilidade da morte nos faz lembrar que o dia de buscar a Deus, o dia de restaurar relacionamentos, o dia de ajudar os outros e de abençoar o mundo ao nosso redor é hoje — porque pode ser o último. Enfrentar a mortalidade nos leva a fazer perguntas imprescindíveis: quem somos nós e para que serve a vida?

Na Quarta-feira de cinzas, a igreja responde a essas perguntas por meio de nossa história. Lembramos a nós mesmos que os seres humanos foram criados para conhecer a Deus e desfrutá-lo e que, por causa de Jesus, isso é possível, mesmo depois da morte.

O que é mais transgressor e chocante na Quarta-feira de cinzas deste ano — e, talvez, de todos os anos — não é o fato de dizermos às pessoas da nossa igreja que elas vão morrer. Não é o fato de marcarmos suas frontes com cinzas [prática comum nas igrejas Anglicana e Católica] — uma prática que muitos terão que alterar este ano devido à COVID-19. É o fato de que, depois da imposição das cinzas (ao menos em um ano comum), tomamos juntos a Ceia do Senhor.

Nesta Quarta-feira de cinzas, então, lembraremos da morte como comunidade cristã, mas também nos apegaremos ao conhecimento de que a morte não tem a palavra final. Jesus é a ressurreição e a vida. A pandemia nos deixou particularmente famintos por essa esperança.

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Em uma das páginas de seu diário, Henri Nouwen conta uma bela história sobre a ocasião em que viu alguns irlandeses enterrando um fazendeiro, em Donegal. Eles colocaram um caixão feito à mão no solo, cobriram-no com areia e grama, e então, um dos homens pegou dois pedaços de madeira e os amarrou — formando uma simples cruz para marcar o túmulo do amigo. Os homens, então, fizeram o sinal da cruz e saíram em silêncio. Sem palavras. Sem flores. Sem funeral.

Nouwen disse que, para ele, nunca ficou tão claro que alguém estava morto — e não que apenas estava dormindo ou “tinha falecido” ou “estava descansando”, mas estava morto mesmo. Era uma visão da morte sem adornos, imponente, real. Ele escreve: “O realismo deles tornou-se um realismo transcendente pela simples cruz de madeira sem adornos, dizendo que onde a morte se afirma, a esperança encontra suas raízes”.

A Quarta-feira de cinzas é uma prática de realismo transcendente. Em um ano em que a realidade da morte ecoa alto em nossos ouvidos, a Quarta-feira de cinzas nos sussurra que as raízes da esperança crescem cada vez mais.

Tish Harrison Warren é sacerdote da Igreja Anglicana na América do Norte e autora de Liturgia do Ordinário e Oração da noite (IVP, 2021).

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