Na cobertura da CT sobre a seita Shincheonji, sediada na Coreia, fontes da reportagem mencionaram a dificuldade que familiares e amigos muitas vezes enfrentam, quando tentam ajudar entes queridos a enxergarem a verdade sobre grupos religiosos aos quais se juntaram, que exercem sobre eles alto controle, e quando [devem]ajudá-los a sair. Mesmo depois que os participantes deixam esses grupos, ainda enfrentam uma longa jornada para reconstruir sua vida e — para aqueles que são de origem cristã — também para restaurar a sua fé.

A CT conversou com Tore Klevjer — conselheiro cristão baseado em Wollongong, na Austrália, e presidente da Cult Information and Family Support [uma rede australiana de informação e apoio para pessoas envolvidas em grupos religiosos com características de seita] — sobre questões como a própria experiência de Klevjer no grupo Children of God [Filhos de Deus], como ele aconselha ex-membros de grupos religiosos desse tipo e como as igrejas e os cristãos podem ajudar mais as pessoas vindas desses contextos.

Esta entrevista foi editada para maior clareza:

CT: Você não só é especialista em aconselhamento para questões relativas a seitas, mas também teve uma experiência pessoal nessa área. Poderia compartilhar mais sobre isso?

Klevjer: Eu cresci em um lar cristão, em Byron Bay, na Austrália. Depois que minha mãe faleceu, eu estava viajando pela Europa, quando minha namorada terminou comigo e se casou com outra pessoa. Fiquei deprimido e desenvolvi um pavor cada vez maior de voltar para a Austrália, pois tinha a sensação de que lá me aguardava uma vida sem sentido. Na época, eu estava vulnerável e desiludido com a vida. Foi então que fui recrutado pelo Children of God [Filhos de Deus], um grupo voltado para hippies que recebia muita cobertura por parte da mídia, pois era visto como uma “seita sexual”, por causa de algumas de suas práticas.

Eu os conheci em Amsterdã, enquanto viajava de carona pela Europa. Sua felicidade, seu zelo e sua aparente liberdade em relação às regras da sociedade me atraíram. Tive uma sensação estranha e incômoda de que havia algo de errado, mas não consegui identificar exatamente o que era. Parecia o filme The Stepford Wives, pois entrei em um mundo surreal de perfeição aparente, o qual, desde então, percebi que só pode ser alcançado através de um controle extremo.

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Com o passar do tempo, eles me ensinaram a contrabandear mercadorias pelas fronteiras, a fazer câmbio de dinheiro no mercado negro e a mentir sobre mim mesmo perante empresas e igrejas, para obter o seu apoio. Caso alguma vez eu me recusasse a seguir com essas práticas enganosas, eles me perguntariam: “Você não tem fé para isso?” O pecado tornou-se algo totalmente subjetivo.

Diziam-nos para renunciarmos à família e aos antigos amigos porque “os inimigos do homem serão os da sua própria família” (Mateus 10.36). Mudei meu nome para Abel e escrevi uma carta para meu pai, dizendo-lhe que agora eu tinha apenas um pai, e esse pai era Deus. Isso partiu seu coração.

Quando o grupo anunciou uma investida na Ásia, fomos para a Índia e passamos quatro anos ensinando educação religiosa em escolas e faculdades de lá.

Quando você começou a perceber que havia algo de errado, e como saiu do grupo?

No último ano que passei no grupo, eles introduziram uma nova fase de reciclagem, na qual éramos menosprezados, examinados a fundo, criticados e exorcizados. Na minha frustração, eu recorria cada vez mais à minha Bíblia e cada vez menos aos escritos do grupo, em busca de consolo. Isso me levou a questionar o grupo, até que eu, minha esposa e nossos cinco filhos fomos expulsos.

Após retornar à Austrália, a recuperação foi intensa. Eu fora institucionalizado pelo grupo Children of God por 11 anos, e agora não tinha a menor ideia de como a sociedade funcionava, além de ter muito pouco dinheiro. Ao mesmo tempo, lentamente fui percebendo que havia sido enganado e que tinha desperdiçado alguns dos melhores anos da minha vida. Eu bebia muito, meu casamento estava à beira de um desastre e eu estava em um estado tão emotivo que chorava incontrolavelmente sempre que cantávamos hinos na igreja.

Acabei construindo do zero uma fé que agora posso chamar de minha. Já se passaram 39 anos desde que deixei a seita.

Depois de deixar o grupo, quis investigar como pessoas podem ser levadas a aderir a um sistema de crenças em que acabam por trair seus próprios compassos morais e no qual são levadas a acreditar em coisas ridículas, que não passam de invenções. Devorei muitos livros que tratam do tema sistemas de crenças saudáveis e não saudáveis, e formalizei esses estudos com um diploma de aconselhamento.

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Ao longo dos anos, aconselhei muitas famílias com problemas, que perderam entes queridos para seitas de várias religiões, e também ajudei muitos ex-membros a se recuperarem.

Os evangélicos muitas vezes pensam no termo seita como um grupo que se desvia do cristianismo bíblico ortodoxo (como, por exemplo, um grupo que nega a divindade de Jesus). Qual é a sua abordagem?

A maioria de nós — dos que trabalham nesta área — prefere uma definição mais sociológica, a qual conceitue uma seita como um grupo que controla, coage ou abusa dos direitos e liberdades do indivíduo. Esse tipo de controle também pode acontecer no âmbito da crença ortodoxa. Por exemplo, uma igreja pode ser doutrinariamente correta e, ao mesmo tempo, controlar os membros de forma legalista, recorrendo a culpa e medo.

Algo que ajuda a compreender este tópico é olhar para outros sistemas de alto controle, como o abuso ou a violência doméstica, por exemplo. Num relacionamento abusivo, o sentido de identidade da pessoa é sistematicamente prejudicado, até que ela se torne totalmente dependente e submissa a seu agressor. A vítima se torna participante do próprio abuso, e sente que não pode viver fora desse sistema. Ela é isolada de influências externas e seu comportamento, suas informações, seus pensamentos e suas reações emocionais são controlados. Os indivíduos permanecem em ambientes religiosos controladores pelas mesmas razões que uma pessoa permanece em um relacionamento abusivo.

Por que você acha que é importante que os cristãos pensem no termo seita a partir de um ponto de vista sociológico, e não teológico?

Primeiro, porque muitas igrejas pensam que, se a sua congregação aprender boa teologia, seus membros não serão vítimas de uma seita. Meu pai costumava dizer: “Apegue-se à Bíblia, filho. Ela nunca enganou ninguém!” Embora isso possa ser verdade, as pessoas podem usar a Bíblia de maneiras muito enganosas. Se os membros ou ex-membros se dispuserem a analisar o bom ensino metódico em torno de algumas doutrinas centrais, isso poderá ajudar muito a dissipar os mitos que lhes são ensinados. No entanto, o que leva alguém para uma seita é muito mais do que meramente crenças doutrinárias; [podem ser coisas] como um processo de coerção gradual e a retenção de informações controversas, por exemplo.

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Em segundo lugar, se uma pessoa abandona uma seita, a prioridade da igreja em geral é restaurar a boa teologia. Eles não reconhecem que estamos lidando com uma pessoa que foi abusada e manipulada espiritualmente, e que precisa de tempo para se curar. Muitas vezes, esses antigos membros de seitas sentem que não se enquadram, têm problemas com figuras de autoridade (que podem incluir conselheiros ou pastores) e rebelam-se contra a estrutura. Eles precisam ser aceitos e ver que há tolerância, enquanto processam tudo pelo que estão passando.

É importante que os cristãos não tentem pensar por essas pessoas, mas sim apresentem várias ideias para discussão, permitindo que os ex-membros de seitas cheguem às suas próprias conclusões. O ensino da Bíblia precisa ser abordado com grande sensibilidade, permitindo perguntas, discussões e divergências.

Na sua prática de aconselhamento, qual é a primeira coisa que você diz para um ex-membro de um grupo altamente controlador?

“Não é culpa sua. Você não é estúpido por ter se juntado a eles.”

Geralmente essas pessoas sentem muita vergonha por terem se deixado conduzir por aquele caminho, e, quando olham para trás, para as coisas malucas que antes acreditavam ser verdadeiras, podem pensar que apenas pessoas meio malucas ou ingênuas poderiam não só ter engolido tal absurdo, mas também o ensinado a outros. Reconhecer o processo de recrutamento e aprender como ele foi ativamente configurado e direcionado é um excelente começo para reiniciar e uma base para crescer. A ciência em torno da nossa necessidade humana de pertencimento e as experiências na área da conformidade social dizem-nos que qualquer pessoa pode ser vulnerável, dadas as devidas circunstâncias.

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Fale-nos do processo de aconselhar alguém que esteve envolvido em um grupo altamente controlador.

Muitas questões surgem, entre elas questões de relacionamento com entes queridos, de limites e de como dizer não, de pensamento crítico, de perda de identidade e de perda de sentido e de propósito.

Avaliar suas necessidades físicas e sua saúde mental é um bom ponto de partida. Esses indivíduos têm comida, um teto sobre a cabeça e uma rede familiar? Ou são pessoas sozinhas, sem apoio de ninguém? Precisam de intervenção médica?

Conversei com muitas pessoas que fizeram terapia, depois de deixar uma seita, e que disseram: “O psicólogo não me entende!” Os conselheiros seculares tendem a minimizar a experiência na seita e a focar em questões da infância, ou esperam que a pessoa que está sendo aconselhada os instrua sobre sua experiência na seita. A pessoa sai da terapia com a sensação de ter acabado de gastar um bom dinheiro para instruir o terapeuta. Para ser eficaz nesta área, um conselheiro precisa “entender” do assunto. Explicar como acontece o controle da mente e o que as seitas têm em comum é um ótimo lugar para começar. Isso ajuda a pessoa a normalizar o que aconteceu com ela, e a não se sentir isolada nem sozinha.

Um princípio bíblico útil para lembrarmos é que o propósito inicial de Deus era criar-nos com livre arbítrio. Uma seita controladora nos tira isso. Portanto, se eu conseguir trazer uma pessoa de volta ao ponto em que ela seja capaz de pensar por si mesma, e se eu conseguir guiá-la em uma boa direção, mas sem lhe impor minha própria visão de mundo, chamo isso de sucesso. Afinal, a verdadeira conversão é uma obra do Espírito Santo.

Nos casos em que a pessoa que você atende tem formação cristã, quando e como você aborda a fé e a igreja?

Nunca presumo que deva discutir teologia. Compartilhar o evangelho com alguém que está se recuperando de um suposto “evangelho” que, por sua vez, também foi compartilhado com ele, pode ter o efeito de disparar certos gatilhos. Às vezes, pergunto à pessoa como ela vê sua fé depois de ter saído [da seita], e recebo respostas mistas. Na maior parte das vezes, a pessoa vai querer esperar para ver e reavaliar mais tarde. Às vezes, ela terá perguntas específicas relacionadas a interpretações da Bíblia ou a Escrituras distorcidas pela seita. Muitas vezes há fobias neles incutidas de que se abandonarem “a mais sublime vontade de Deus”, ele os julgará; por isso, torna-se importante identificar e dissipar medos irracionais.

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Se a pessoa que está sendo aconselhada ainda estiver lendo a Bíblia, eu recomendaria que ela mudasse para uma versão bíblica diferente daquela usada pela seita. Isso a ajuda a ler a Bíblia com novos olhos e a não enxergar automaticamente a interpretação da seita. Algo que também pode ajudar é dar permissão à pessoa para que não leia a Bíblia por um tempo, até que as coisas se acalmem, e, em vez disso, concentrar-se em outras disciplinas espirituais ou refletir sobre a criação de Deus e seus atributos de amor e misericórdia.

Lembre-se de que essa pessoa foi ferida espiritualmente e confiou em alguém que disse falar a verdade. Ela não está pronta para que outra pessoa lhe diga a mesma coisa. Precisa de amor, de cuidado e de espaço para se curar em seu próprio ritmo. Frequentar uma igreja pode nunca ser algo que a deixe à vontade e, caso frequente uma, pode ser que queira apenas fazer parte de um pequeno grupo de comunhão. É importante que aprenda a tomar suas próprias decisões e a pensar nas coisas por si mesma. Coisas como profecias, “palavra de conhecimento” e experiências excessivamente espiritualizantes podem disparar certos gatilhos para uma pessoa que já foi manipulada.

Se descobrirmos que um ente querido faz parte de um grupo altamente controlador, o que devemos fazer?

Procure manter o relacionamento e a comunicação com ele a todo custo. Fazer declarações diretas do tipo “Você está em uma seita!” ou “Você está sendo enganado!” não ajuda em nada. Os membros de seitas são frequentemente alertados de que “os inimigos do homem serão os da sua própria família” (Mateus 10.36), portanto, confrontar a seita significará cumprir as profecias proferidas para eles, por seus líderes, e provar ainda mais que o grupo está correto. É importante não levá-los mais ainda para dentro do grupo.

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Pergunte a si mesmo que necessidade o grupo está atendendo na vida do seu ente querido. É a necessidade de aceitação, de comunidade? Existe algum relacionamento rompido? Problemas com algum vício? Uma figura paterna dominante ou controladora? Às vezes, há questões familiares que precisam ser abordadas, para que a pessoa queira voltar a fazer parte da vida doméstica.

Para obter orientação específica sobre sua situação, entre em contato com alguém que entenda bem como funcionam as seitas — há boas informações disponíveis sobre maneiras de se relacionar com membros de seitas. Este é um problema que raramente pode ser resolvido com uma abordagem lógica.

Como a igreja pode se preparar melhor para proteger suas ovelhas de grupos religiosos altamente controladores?

As igrejas podem olhar para dentro de si mesmas e lembrar que um controle semelhante ao das seitas existe em uma escala móvel. Pergunte a si mesmo se sua igreja está controlando a congregação de forma legalista. Devemos lembrar que os fariseus dos dias de Jesus viviam vidas moralistas, mas extremamente legalistas, e colocavam leis e expectativas sobre as costas dos outros, ao mesmo tempo em que não viam as suas próprias necessidades e pobreza de espírito.

Além disso, lembre-se também que as seitas discipulam seus membros — elas os ensinam e os fazem ensinar outros. Memorizam Escrituras sobre tópicos-chave. Eu me entristeço ao ver cristãos sendo entretidos em grupos de jovens com coisas como competições de quem come mais tortas, enquanto se negligenciam bons ensinamentos baseados na apologética, os quais esses jovens são capazes de compreender e de usar para articular as próprias crenças. O ensino bíblico sobre os sinais da segunda vinda de Cristo poderia prepará-los para identificar falsos profetas.

As igrejas também estão falhando com nossos jovens por não educá-los sobre o tema de seitas e enganos. Talvez presumam que, se os jovens aprenderem a Bíblia, estarão seguros. Instruir sobre manipulação, coerção e conformidade social é útil, bem como identificar pontos de vulnerabilidade pessoal que possam ser explorados: incerteza sobre o futuro, carência de boas amizades ou um período de transição na vida, como a faculdade.

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Alguém já disse que “uma cerca no topo de um penhasco é muito mais eficaz do que um hospital no pé dele”. Precisamos de conscientização em nossas igrejas e de mais ensino em nossos grupos de jovens. Afinal, jovens envolvidos no processo de descobrir a vida são especialmente vulneráveis.

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