Todos os cristãos concordam que a história da Páscoa é a história da nossa salvação. Paulo escreveu: “Por meio deste evangelho vocês são salvos, […] que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia” (1Coríntios 15.2-4). Foi por “nós e por nossa salvação”, como diz o Credo Niceno, que Jesus se fez carne, morreu e ressuscitou como “Senhor e Cristo” (Atos 2.36).

Mas como nossa salvação aconteceu, exatamente? As teorias sobre a expiação de Cristo contam histórias do mecanismo interno da Páscoa. E os três modelos mais populares ao longo da história da igreja — a teoria do Christus Victor, a teoria da satisfação e a teoria da substituição penal — são também notadamente políticas. Elas foram moldadas pelos contextos de governo em que surgiram.

Passei a gostar de estudar essas teorias porque isso esclareceu e enriqueceu minha compreensão do caráter de Deus, e porque aprender sobre os contextos políticos [em que elas surgiram] tem me mostrado para onde nossa sociedade está caminhando hoje.

Meu primeiro contato com a teoria do Christus Victor foi na obra O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa, embora a teoria seja predominante entre os primeiros teólogos, como Orígenes, Atanásio e Gregório de Nissa. Estes falam de Jesus nos redimindo dos poderes opressores — o pecado, a morte, o Diabo —, aos quais estamos vinculados por nossa própria infidelidade. Cristo “desarmou” esses poderes e triunfou sobre eles na cruz (Colossenses 2.13-15). Deus se encarnou, como escreveu Ireneu, para que “Ele pudesse matar o pecado, privar a morte de seu poder e vivificar o homem”.

Isso fazia sentido no antigo mundo greco-romano, onde a conquista era algo comum e um redentor era aquele que podia comprar a liberdade de alguém que fora escravizado ou feito prisioneiro de guerra. No século 11, porém, quando os normandos trouxeram o sistema feudal para a Inglaterra, Anselmo, bispo de Cantuária, contou uma nova história da expiação.

Baseando - se abertamente nas regras de honra e de hierarquia de sua época, a teoria da satisfação de Anselmo inverte os papéis: em vez de Satanás, é Deus Pai que exige que a dívida da humanidade seja paga, antes que a reconciliação possa ocorrer. Aqui, o pecado da humanidade viola a honra divina e exige uma satisfação que não conseguimos oferecer, de modo que Deus se torna humano para satisfazer essa obrigação em nosso nome.

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Essa mudança de papel do Pai persistiu, quando a substituição penal surgiu, 500 anos depois, junto com o sistema jurídico moderno. Figuras como João Calvino, que estudou Direito antes de se tornar um reformador, substituíram a imagem de um servo que tentava satisfazer seu senhor por um tribunal, onde Deus, como justo juiz, condena pecadores que violam sua lei. Mas “Cristo se interpôs, tomou sobre si o castigo” e “propiciou a Deus Pai”, como escreveu Calvino em suas Institutas, baseando-se em passagens como Isaías 53.5-6 e Romanos 3.25, de modo que Deus não tem mais “uma disposição hostil para conosco, [com] seu braço levantado para nossa destruição”.

Eu entendo porque a substituição penal tornou-se “uma marca distintiva” do evangelicalismo, nas palavras do falecido J. I. Packer. Essa adoção é, em parte, de ordem teológica — abundam defesas convincentes da teoria —, mas, em parte, de ordem cultural. Posso explicar facilmente a substituição penal porque sabemos como funciona um tribunal. A substituição penal é inteligível de imediato no mundo da Reforma, do Renascimento, do Iluminismo e da Revolução Industrial.

De muitas maneiras, ainda vivemos no mundo [de então], mas, de outras muitas maneiras, não. Acho que o interesse que ressurge na teoria do Christus Victor, a visão mais convincente para mim, é um indicador pouco notado dessa mudança. Um Deus que esmaga o mal que nós não conseguimos derrotar e que nos liberta desse esforço é uma boa nova em uma cultura preocupada com a corrupção institucional.

A repercussão cultural, nova ou renovada, de uma teoria sobre a expiação não prova sua veracidade, evidentemente. As teorias podem atrair fãs por razões perversas. Alguns proponentes da teoria do Christus Victor, por exemplo, mostram-se por demais ansiosos em dispensar as noções de pecado pessoal.

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Contudo, a resposta da cultura a uma teoria pode nos dizer algo sobre os anseios e as necessidades do nosso tempo. Ela oferece uma visão de nossos dramas políticos e também nos lembra das diferentes histórias que explicam a obra de Cristo na cruz.

Bonnie Kristian é colunista da Christianity Today e vice-editora do periódico The Week. Ela é autora de A Flexible Faith: Rethinking What It Means to Follow Jesus Today (2018) e Untrustworthy: The Knowledge Crisis Breaking Our Brains, Polluting Our Politics, and Corrupting Christian Community (2022).

Tradução: Mariana Albuquerque

Edição: Marisa Lopes

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