Nota da edição em português: Este artigo foi escrito em 2016, para o contexto norte-americano, mas acreditamos que ele ainda tem muito a ensinar hoje, para outras pessoas ao redor do globo.

Nunca antes aguardei com tanta ansiedade o início do Advento. Este último ano eclesiástico começou com os tiroteios de San Bernardino. Vimos as mortes de Alton Sterling, Philando Castile e Terence Crutcher, a emboscada da polícia em Dallas e em Baton Rouge, e o horror do massacre da boate Pulse. Testemunhamos a crescente crise de refugiados sírios, a violência contínua do ISIS, a contaminação da água em Flint, bem como terremotos mortais, furacões, inundações e incêndios florestais pelo mundo todo. E, é claro, passamos por uma eleição presidencial, que trouxe à tona e continua a expor profunda divisão, hostilidade e desconfiança em nossa sociedade.

Tem sido um ano difícil. Coletivamente falando, todos estamos sofrendo. O Advento não poderia vir em melhor hora.

Para mim, houve anos em que praticar o Advento exigia disciplina; tinha que me segurar para não pular logo para a alegria do Natal. Este ano, eu não poderia pular para um Natal alegre nem se tentasse. Este ano, sei, com toda a minha convicção, que preciso desse espaço para parar e lamentar o quanto estamos quebrados, e toda essa decepção e essa escuridão que nos cerca. Este ano, eu me joguei nos braços do Advento como se estivesse me atirando nos braços de um velho amigo. Nesse espaço, sou abraçada pela comunidade da minha igreja local e global, enquanto, juntos, lamentamos, esperamos, sofremos e cantamos “Oh Come, Oh Come Emmanuel” [Ó venha, ó venha, Emanuel”].

Meu amigo e mentor, padre Kenny, me disse recentemente: “Você não pode continuar em águas turbulentas por muito tempo. Depois da turbulência, você precisa de águas tranquilas.” Acho que todos nós, coletivamente, poderíamos nos beneficiar de um pouco dessas águas tranquilas.

Mas como são essas “águas tranquilas” do Advento?

As tradições litúrgicas orientais e ocidentais celebram o Advento, mas nossas práticas têm um sabor e um foco ligeiramente diferentes. Nas igrejas ortodoxas orientais, o Advento é uma época penitencial, uma “pequena Quaresma”. Nas tradições litúrgicas ocidentais, enfatizamos a preparação para a vinda de Cristo, o que certamente envolve arrependimento, mas também envolve descanso, esperança, anseio e quietude.

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O Advento mantém em tensão duas posturas de fé complementares, mas aparentemente paradoxais: o arrependimento e o descanso.

Uma vantagem de viver no hemisfério Norte é que o calendário litúrgico segue aproximadamente as estações da natureza. A desolação da quaresma em março dá lugar ao renascimento da primavera, geralmente perto da Páscoa. No Advento, os dias escurecem mais cedo e, em torno do Natal, as horas de luz começam a se estender novamente. Nestes longos dias de dezembro, tudo na natureza — incluindo os nossos corpos — quer desacelerar e ficar num canto, encolhidinho. Os ursos hibernam, as árvores perdem as folhas, o canto dos pássaros silencia. E nós, que estamos cansados, precisamos de descanso.

No entanto, ao iniciarmos este novo ano eclesiástico e nos prepararmos para a vinda do Rei, também precisamos de arrependimento.

Nós, cristãos, não apenas lamentamos o pecado e a condição caída que vemos no mundo, mas também [os que sentimos] em nós mesmos. Tenho de parar, identificar e me arrepender das maneiras como contribuí para essa falta de paz no mundo — mesmo que em meu âmbito pessoal diminuto, corriqueiro. Juntos como igreja reconhecemos e proclamamos que não somos observadores inocentes do que está errado com o mundo; estamos implicados em seu mal. Sua violência, seu ódio e sua escuridão partem nossos corações, mas então, com horror, encontramos essa violência, esse ódio e essa escuridão bem vivos, dentro de nós — no tratamento que dispensamos a inimigos e a entes queridos, em nossa falsa adoração e auto-obsessão.

Isaías nos diz que “No arrependimento e no descanso está a salvação de vocês, na quietude e na confiança está o seu vigor” (Isaías 30.15). Para mim, a dor e os rigores do arrependimento parecem estar em desacordo com o consolo e a tranquilidade do descanso; nas Escrituras e no Advento, porém, encontramos essas coisas entrelaçadas. Após este ano difícil, podemos descansar na certeza da vinda do reino de Deus, mesmo enquanto nos arrependemos das maneiras pelas quais falhamos em viver de acordo com a visão desse reino.

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No [livro] Liturgia do Ordinário, examino como o calendário litúrgico nos lembra que “estamos voltados para nossa esperança futura; ainda assim, não tentamos escapar da nossa realidade presente, da condição caída e do sofrimento deste mundo, que são reais e avassaladores”. Por mantermos arrependimento e descanso lado a lado, não menosprezamos nem ignoramos o que foi sombrio, distorcido e decepcionante no ano que passou. Pelo contrário, somos chamados a encarar isso de frente, com honestidade, enquanto confiamos em um Deus que prevalecerá no final.

Em sua descrição do chamado de Isaías ao arrependimento e ao descanso, Christopher Seitz escreve:

Salvação e força são a consequência de uma firme convicção e de uma tranquila confiança na atenção e na preocupação constantes de Deus por [seu povo] (...) Em meio às alegações turbulentas de políticos astutos, profetas enganosos, sacerdotes ensandecidos e governantes injustos, resta outro caminho, e o profeta nunca se cansa de insistir que este é o único caminho.

Seitz está se referindo aqui às realidades políticas e culturais do antigo Israel, mas sua descrição soa assustadoramente contemporânea. Ele prossegue, dizendo que arrependimento, descanso, quietude e confiança eram “disposições opostas” ao tempo de Isaías. Em nosso momento histórico particular, sinto algum consolo em saber que, ao longo da história, o povo de Deus foi reiteradamente chamado ao arrependimento e ao descanso em meio à dor, à injustiça e à turbulência.

Vivemos em uma cultura repleta de ruídos, na qual muitas vezes sentimos que temos de gritar só para sermos ouvidos, na qual o alarde da indignação das mídias sociais supera o chamado de nossas comunidades como corpo, na qual parece impossível ouvir uma voz mansa e suave. O Advento nos convida a nos aquietarmos, a nos arrependermos e a nos inclinarmos para esse anseio. A redenção está apontando na esquina do universo, da mesma forma foi anunciada a alguns pastores desavisados, ​​na noite do nascimento de Cristo. Voltar a Cristo e descansar nele não significa fugir das trevas do mundo. Significa proclamar que, mesmo em meio às trevas, ainda resta outro caminho — o único caminho.

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Tish Harrison Warren é pastora na Igreja Anglicana, na América do Norte, e trabalha com a iniciativa Women in the Academy & Professions da InterVarsity. É autora de Liturgia do Ordinário: Práticas Sagradas na Vida Cotidiana (IVP, dezembro de 2016). Mais informações em TishHarrisonWarren . com.

Traduzido por Mariana Albuquerque

Editado por Marisa Lopes

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