Detesto a época do Natal — não tanto pelo predomínio do espírito comercial que, afinal, permeia toda a vida moderna, mas muito mais pelo sentimentalismo nauseante.

A história do nascimento de Jesus não tem absolutamente nada a ver com bebês fofinhos, troca de presentes ou celebração da união familiar, muito menos com neve, renas, ramos de visco e Papai Noel.

A história do Natal tem a ver com controle imperial, preconceito social, mães solteiras, refugiados políticos, astrólogos pagãos, violência, luto e ditadores assassinos. E, por ser assim, abre uma janela para o nosso próprio mundo contemporâneo.

Veja o relato do Evangelho de Mateus sobre o nascimento de Jesus, onde assassinatos horrendos ocorrem em meio a esse evento importante. Em Mateus 2.14, Jesus é levado para o Egito, assim como Israel sob o primeiro José. E Herodes, assim como faraó antes dele, ordena a matança de meninos israelitas (v. 16).

Os judeus que leram o Evangelho de Mateus também devem ter captado paralelos com algumas tradições judaicas não bíblicas sobre o nascimento de Moisés. A narrativa apresenta Jesus tipologicamente, como um novo Moisés, mas em especial como o verdadeiro Israel que encarna a vocação de Deus de ser luz para as nações, como Filho obediente de Deus, tema que é desenvolvido no restante do Evangelho de Mateus.

Paradoxos preocupantes abundam nessas narrativas da infância. O Verbo, a quem o universo pertence, não tem onde reclinar a cabeça, muito menos um lugar que possa chamar de lar. Os magos pagãos acabam sendo servos do Deus de Israel, e são levados a reconhecer o verdadeiro rei de Israel, enquanto o governante de Israel é pior do que qualquer tirano pagão.

Quando a crueldade reina

Herodes foi rei da Judeia aproximadamente de 37 a 4 a.C. Ele é lembrado como um “construtor prodigioso” que edificou obras como palácios fortificados por uma extensa área, toda a cidade de Cesareia, na costa do Mediterrâneo, e o segundo templo em Jerusalém.

No Evangelho de Mateus, o rei Herodes fica perturbado com a notícia de que nascera alguém que era o rei dos judeus (2.2-3). Herodes decide localizar a criança e envia os Magos a Belém, para que lhe trouxessem um relatório; estes, porém, recebem um aviso, em sonho, para não voltarem a se encontrar com Herodes (v. 7-12). Um anjo também avisa José e Maria para que fujam para o Egito, pois Herodes pretende matar seu bebê (v. 13). Em retaliação, por ter sido enganado, Herodes ordena que todos os meninos de Belém de dois anos para baixo sejam mortos (v. 16).

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Dentre a população da vila de Belém — que não tinha mais de 1 mil habitantes, segundo estimam os estudiosos —, cerca de 20 bebês e crianças pequenas do sexo masculino foram mortos por Herodes. Embora não haja nenhum relato extrabíblico que documente melhor esse trágico evento, ele se encaixa muito bem naquilo que sabemos da brutalidade paranóica de Herodes, por meio de historiadores de sua época, como Josefo.

Por ordem de Herodes, sua esposa favorita e seus dois filhos foram estrangulados, por suspeita de traição. Seu cunhado sofreu um “afogamento acidental”, quando se tornou muito popular. Herodes também ordenou que nobres fossem executados no dia de sua morte, para garantir o luto nacional. Diz-se que o imperador Augusto popularizou o ditado: “Melhor ser o porco de Herodes do que seu filho”.

O caráter e as ações de Herodes revelam que o poder traz consigo seus próprios paradoxos. Quanto mais poder alguém adquire, mais inseguro se torna. Amigos são substituídos por bajuladores, com cuja lealdade nunca se pode contar. Expurgos frequentes são necessários. Daí a superstição e a paranoia que envolveram a maioria de infames tiranos da história da humanidade, até pessoas como Vladimir Putin e Kim Jong-un nos dias de hoje.

Voz que clama

Mateus lê a matança dos inocentes por meio das lentes de um dos momentos mais angustiantes da história de sua nação: “Ouviu-se uma voz em Ramá, choro e grande lamentação; é Raquel que chora por seus filhos e recusa ser consolada, porque já não existem” (Mateus 2.18).

Mateus cita Jeremias 31.15, texto que fala de Raquel lamentando a morte de seus filhos. A passagem descreve em termos figurativos a esposa favorita de Jacó (Israel) chorando porque seus descendentes estavam sendo levados para o exílio na Babilônia. Ramá era o local tradicional de seu sepulcro, e os judeus, incluindo Jeremias, reuniam-se ali para fazer a jornada (Jeremias 40.1).

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Raquel, que lamentava de seu sepulcro, em Belém, durante o exílio, agora chorava, enquanto se desenrolava outra fase da trágica história de seu povo.

Mateus, ao contrário de Lucas, não traz nenhum relato do Magnificat, o jubiloso cântico de Maria. Ele fala apenas da angústia de Raquel. O alvorecer da era messiânica de salvação provoca uma reação violenta, e esse conflito com os poderes do mal continuará, até que o reino do Messias seja finalmente vitorioso.

Talvez com isso também se pretenda fazer uma conexão com o tema do êxodo. Assim como o primeiro êxodo foi provocado pelo gemido do povo escravizado, o qual chegou aos ouvidos de Deus, lembrando-o da aliança que fizera com os antepassados deles, também o novo êxodo da humanidade começa com os gemidos do povo de Deus por causa das dores do mundo.

Embora algumas tradições cristãs lembrem o massacre dos meninos por Herodes, guardando a Festa dos Santos Inocentes, em 28 de dezembro (ou 29 de dezembro, para os fiéis ortodoxos), outros eventos do calendário litúrgico, como a Epifania (a visita dos reis Magos), recebem maior atenção coletiva.

Os sermões e as canções natalinas tradicionais também ignoram as lágrimas de Raquel (Mateus 2.18), em favor do louvor de Maria. Mas ambos há muito são inseparáveis nas devoções judaica e cristã.

O lamento foi a resposta dos antigos israelitas ao silêncio de Deus, diante da flagrante injustiça. Como adoravam um Deus que falava e agia, ficaram perplexos com seu silêncio e sua indiferença aparentes. Como acreditavam que Deus era justo, ficaram preocupados com sua demora em julgar a maldade.

Ao contrário de reclamações e resmungos, o lamento é dirigido a Deus. No lamento, paradoxalmente, nos apegamos a Deus com fé, mesmo quando o acusamos de estar sendo injusto ou indiferente.

O Salmo 88, o mais soturno de todos os salmos de lamento, nos conecta ao silêncio de Deus e à escuridão em que muitos de nós vivemos em situações que vão desde depressão, demência, violência, doenças graves, divórcio, luto, invalidez, desemprego e assim por diante.

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O Salmo 22 estava nos lábios de Jesus, quando ele foi pendurado na cruz (“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”). Ele estava expressando solidariedade a todos os que proferiram essas palavras na história da humanidade.

Apreendendo a morte

Quando as pessoas morrem muito jovens, por um ato de violência, acidente ou doença, é compreensível sentir raiva. Mas isso sempre foi algo normal durante a maior parte de nossos registros históricos, e ainda é a norma em muitas partes do mundo em desenvolvimento.

Alan Lewis terminou de escrever seu notável livro Between Cross and Resurrection: A Theology of Holy Saturday, durante os últimos estágios de um câncer terminal. Ele escreveu:

Como soam tolos e vazios os protestos de pessoas saudáveis, ricas e seguras contra a injusta brevidade de suas vidas, quando ouvidos em contraste com o clamor daqueles que suportam sem esperanças a monotonia da banalização do mal, os ciclos intermináveis de pobreza e fome, guerra, opressão e abusos, e para aqueles cuja a vida ser abreviada de fato seria uma boa nova.

A igreja é chamada a participar na intercessão de Jesus por seu mundo. Isso envolve lembrar os “gemidos” do mundo de Deus tanto em orações públicas quanto em testemunho público.

Isso inclui o terrível sofrimento não apenas do povo da Ucrânia e de Mianmar, mas também daqueles envolvidos em guerras já meio esquecidas e conflitos políticos em outros lugares. A mudança climática afeta mais severamente as pessoas menos responsáveis por ela. Isso é injustiça.

Quanto mais estudarmos a história de nossas nações ou o modo como funciona a presente ordem econômica, mais descobriremos que nosso estilo de vida confortável está sendo subsidiado pelos pobres do mundo. Isso acontece dentro dos países, bem como entre um país e outro. (Basta pensar em como os trabalhadores imigrantes pobres na Califórnia e no Texas sustentam a economia americana, especialmente nos setores da agricultura e das indústrias hoteleira e de restaurantes.)

Para quem se recusa a encarar o sofrimento daqueles com quem convive, o clamor do lamento pode parecer algo “nada espiritual”, muito embaraçoso e até mesmo repugnante. E muitas igrejas que suprimem a tradição do lamento bíblico em suas pregações e liturgias fazem parte desse status quo, de quem se sente tão confortável no mundo e finge que tudo está bem. Elas não anseiam por uma ordem mundial mais justa.

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Se estivermos acostumados a pensar que somos o centro do mundo e que a função de Deus é tornar nossa vida feliz e bem-sucedida (“Deus tem um plano maravilhoso para a sua vida”), é provável que a tragédia nos destrua.

Se, no entanto, aprendemos a enxergar o mundo como um espaço em que há tanto sofrimento injusto, no qual vidas inocentes — como as das 20 crianças do sexo masculino massacradas nos dias de Jesus — são interrompidas prematuramente, então, não ficaremos surpresos quando o que acontece todos os dias para inúmeras pessoas também acontecer conosco.

Fomos tirados do centro. E nosso sofrimento pessoal pode nos tirar ainda mais, se o submetermos a Deus.

Participar do protesto do próprio Deus contra o sofrimento injusto também é algo que deve nos levar a nos afastarmos da autopiedade indulgente e da tentação de nutrir sentimentos de ressentimento em relação aos outros. Deve nos levar a agir no mundo de modo que aborde as causas do sofrimento injusto e das mortes desnecessárias.

Podemos criar espaços nas comunidades locais para que outras pessoas compartilhem suas próprias histórias de sofrimento que tenham sido amplamente ignoradas, como no movimento #MeToo ou (em um cenário político mais amplo) nas várias Comissões de Verdade e Reconciliação que foram criadas em muitos países, no rescaldo de conflitos civis.

Não existem respostas fáceis

Voltando às lágrimas de Raquel, a passagem em Jeremias que Mateus cita prossegue e fala de Deus consolando Raquel, prometendo a restauração de seu povo, porque Israel é “o meu filho querido [...] O filho em quem tenho prazer” (Jeremias 31.16-17, 20; cf. Mateus 2.15-18). Ele fará uma nova aliança (Jeremias 31.31-34).

Os dolorosos eventos de perseguição da infância de Jesus foram a bigorna na qual Deus forjaria o surgimento de um Israel novo e transformado, encerrando seu exílio e inaugurando uma nova aliança, por meio da morte e da ressurreição de seu Filho.

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Por que Deus não avisou as mães e os pais em Belém sobre o plano assassino de Herodes, assim como avisou José?

Tais perguntas são irrespondíveis. O luto é uma experiência terrivelmente solitária, mas também nos liga através do espaço e do tempo com uma humanidade enlutada, que anseia pelo dia em que Deus “enxugará de [nossos] olhos toda lágrima. Não haverá mais morte, nem tristeza, nem choro, nem dor, pois a antiga ordem já passou” (Apocalipse 21.4).

Os inocentes de Belém um dia ressuscitarão e florescerão com todos nós — uma esperança que se tornou possível por meio daquele que foi poupado (mas não por muito tempo).

Até esse dia, as lágrimas de Raquel sempre farão parte da história do Natal.

Tomar parte em sua dor, causada pela matança dos inocentes, é o que nos permite caminhar com Deus na escuridão, com um pé em cada um dos dois mundos: neste mundo, que está gemendo sob o domínio de poderes idólatras, e no novo mundo, que veio à luz e está a caminho.

Vinoth Ramachandra mora em Colombo, no Sri Lanka, e é autor de vários livros, entre eles Sarah's Laughter: Doubt, Tears, and Christian Hope (Langham, 2020).

Traduzido por Marisa Lopes

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