Não é de surpreender que conspirações começaram a circular assim que Jeffrey Epstein foi encontrado morto, por suposto suicídio, em uma prisão de Manhattan, numa manhã de agosto. Epstein, financista rico e bem relacionado, acusado por várias denúncias de tráfico sexual, provavelmente sabia de sujeiras sobre os Clinton, alguns pensaram. E eles, provavelmente, tiveram algo a ver com a sua morte.

A história circulou no Twitter, com a ajuda do então presidente Donald Trump, uma vez que ele próprio a retuitou. O fato de ser uma das falsas acusações de hoje mais fáceis de desmascarar não fez a menor diferença. “As teorias da conspiração não são movidas por fatos”, escreveu Abby Ohlheiser, jornalista do Washington Post na época. “Elas são movidas por atenção.”

Ver o mundo através das lentes de uma conspiração promove um sentimento de empoderamento que pode ser inebriante. Não é difícil entender o poder emocional de acreditar que desmascaramos uma sociedade secreta, que enxergamos o “Deep State” [Estado Profundo] pelo que ele é, controlando nosso governo e tudo mais. Por isso, conforme sugerem as pesquisas, posso entender como a maioria dos cidadãos russos não acredita que a América foi à lua. Posso entender até aquela história antiga, que ganhou ares de nova, e fez com que alguns americanos questionassem a forma arredondada da Terra. As ideias têm um verniz de “razoabilidade”.

As teorias da conspiração provavelmente existem desde que o ser humano raciocina. Mas elas estão aparentemente se espalhando mais rápido, à medida que o pós-modernismo passou para um estágio que alguns filósofos de hoje chamam de “supermodernismo”. O supermodernismo é fruto dessa avalanche de informações. É retratado por meio de pessoas que desistem de questionar o que é verdade e quem tem o direito de contar a narrativa mestra correta. Por causa da proliferação de dados e fontes, os adeptos do supermodernismo só se preocupam com a questão de em quem podem confiar para guiá-los através desse pântano diário de informações.

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O pensamento conspiratório se injeta bem neste ponto. Quem vai me guiar? A resposta do conspirador: eu vou! Eu, o sabe-tudo, levantarei a ponta desta lona [que recobre] o Estado Profundo ou a Ciência Profunda ,e revelarei a você todo o seu funcionamento interno secreto. Você não é “gado”. Você é um pensador independente que pode enxergar as coisas por si mesmo. Essa é a promessa chamativa da conspiração.

Até mesmo Jesus teve de lidar com teorias da conspiração. Ele alertou reiteradamente seus seguidores que as pessoas viriam e importunariam a igreja com conspirações sobre o seu retorno (Lc 17.22-23). Os mercenários pensarão que descobriram tudo. “Olhe aqui! Olhe ali!”, eles dirão. Os contadores de fábulas alegarão ser capazes de remover a lona da história para proclamar a volta de Jesus. Jesus instruiu categoricamente seus discípulos: “Não deem ouvidos a eles!”

A igreja primitiva sofreu com teorias da conspiração sobre a natureza de suas reuniões de adoração secretas. Em um Império Romano hostil, essas teorias frequentemente levaram à perseguição e ao assassinato de cristãos. E as conspirações ainda hoje alimentam a violência contra cristãos em contextos tumultuados, como a Índia, bem como a violência contra outros grupos religiosos, como os ataques alimentados pelas redes sociais contra muçulmanos, no Sri Lanka.

O mundo do pensamento das Escrituras

Os autores bíblicos argumentam que existem maneiras melhores e piores de alcançar conhecimento, e alertam contra crenças recalcitrantes que não podem ser mudadas por evidências. As Escrituras retratam um Deus que argumenta com seu povo e um povo com quem se deve argumentar. Ao compreender e viver dentro desse rigoroso mundo do pensamento das Escrituras, deveríamos ficar naturalmente vacinados contra o consumo ingênuo de teorias da conspiração.

Pela mesma razão, à medida que o analfabetismo bíblico se espalha, devemos esperar ver mais confusão em torno do significado da vida cristã. Embora os americanos relatem benefícios positivos com a leitura das Escrituras, o título do artigo feito a partir de uma pesquisa da LifeWay, em 2017, diz tudo: “Os americanos gostam da Bíblia, mas não a leem de fato. ”O que é ainda pior, menos de um quarto dos americanos está interagindo com as Escrituras com o vigor necessário para compreender seu pensamento profundamente estruturado, de acordo com um estudo recente da American Bible Society. Com a perda de engajamento com a Bíblia vem o enfraquecimento no conhecimento bíblico.

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As confusões decorrentes de tais perdas incluirão as suspeitas habituais: cristãos lançando-se em chamados não confirmados para o ministério, a incapacidade de distinguir indicadores culturais de princípios bíblicos, e até mesmo a propagação de conspirações em nome do dever cristão de buscar a verdade. Também pode incluir suspeitas incomuns. A obra magistral de Brent Strawn, The Old Testament is dying, narra esse analfabetismo desde a Europa do século 19 até hoje, com afirmações sérias como esta: “Os nazistas conseguiram obter sucesso entre os grupos de cristãos alemães, em parte, por causa do difundido analfabetismo bíblico — e aqui devo ser específico: [o analfabetismo relacionado ao] Antigo Testamento.”

Ao compreender e viver dentro do rigoroso mundo do pensamento das Escrituras, deveríamos ficar naturalmente vacinados contra o consumo ingênuo de teorias da conspiração.

Quando questionados sobre a promoção de conspirações, muitos cristãos modernos podem responder: “Mas onde na Bíblia está dito para não acreditar em conspirações?”

Para responder a essa pergunta, devemos buscar entender o “mundo intelectual” da Bíblia. Este mundo vai além das palavras literais dos autores bíblicos e incluiu as ideias consistentes e coerentes que sustentam todo o seu pensamento. É o que Deus, por meio de seus profetas, está tentando nos mostrar, não apenas nos dizer. Esse mundo intelectual, por exemplo, conecta o cuidado aos vulneráveis com o ensino do “olho por olho”, transformando o princípio da justiça em algo que resiste a ser reduzido a mera justiça retributiva .

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O mundo intelectual da Bíblia é encontrado pela instrução que vai além das palavras e histórias, de modo a alcançar os padrões de pensamento das Escrituras. É uma instrução que, com o tempo, pode avaliar com segurança: eis o que acho que os autores bíblicos diriam sobre o transumanismo, a viabilidade da democracia, a legalização das drogas e muito mais. Muitas vezes posso prever o que minha esposa vai pensar sobre algum assunto, mas não porque memorizei muito do que ela diz. O conhecimento que tenho de seu mundo do pensamento vem do fato de encarnar uma vida com ela e de atravessar todo tipo de situações complexas e conflitantes que criamos para nós mesmos. E os profetas nos convidam a viver e a aprender da mesma forma.

As conspirações da Bíblia

Ao longo do ministério de Jesus, muitos de seus contemporâneos pensaram equivocadamente que haviam descoberto por que ele veio e o que estava prestes a fazer. Seus discípulos tinham suas próprias teorias distorcidas, mesmo depois de sua morte e ressurreição (At 1.6). Eles pareciam pensar que todas as peças contribuíam para uma agenda, nem tão oculta assim, que visava restaurar o reino a Israel.

A resposta de Jesus é assustadora: “Não lhes compete saber” (At 1.7). Jesus não lhes deu a conspiração correta; em vez disso, ele os repreendeu sobre o que eles podiam e não podiam saber. Essas restrições devem ser instrutivas para a forma de pensarmos em geral, mas especificamente sobre a forma de pensarmos sobre a proliferação de conspirações com que deparamos. Isso é o que significa entrar no mundo intelectual da Bíblia.

Antes de morrer, Jesus advertiu severamente seus discípulos contra aceitar as várias teorias da conspiração que viriam. “Vocês ouvirão falar de guerras e rumores de guerras”, disse ele (Mt 24.6). Mas seu conselho é revelador: “Cuidado para que ninguém os engane. Porque muitos virão em meu nome [...] e enganarão a muitos ”(Mt 24.4-5).

Na verdade, Jesus foi fundo nas instruções bíblicas sobre como pensar a respeito dessas ideias. Deus deixa claro que não devemos domesticar nossa compreensão do mundo, transformando-a nos tipos de ideias que achamos que funcionam melhor. Em vez disso, somos responsáveis pelo que Deus nos mostra. “As coisas ocultas pertencem a Javé nosso Deus, mas as reveladas a nós e a nossos filhos para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta instrução” (Dt 29.29, tradução do autor).

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O escritor do Eclesiastes vai ainda mais longe. Ele é um homem com tempo, meios, intelecto e zelo para descobrir todo o sistema que dirige o universo — ou para ver o que está atrás da cortina, por assim dizer. Apesar disso, ele se restringe ao que é possível entender: “Mesmo que o homem sábio afirme entender, ele não consegue encontrar” (8.17, ESV). Ele foi feliz em ser reticente sobre afirmar que podia ver por trás da conspiração: “Não conheceis a obra de Deus”, diz ele no versículo 11.5, e acrescenta mais adiante: “Cuidado com tudo o que vá além disso. Não há limite para se fazer muitos livros, e estudar muito deixa o corpo cansado” (12.12).

A própria Escritura nos orienta sobre como lê-la. Ao reduzir a Bíblia a oráculos moralistas ou a regras a serem observadas, deixamos de ser moldados intelectual ou espiritualmente. Conspirações são frutos de hábitos teológicos, para o bem ou para o mal. São tentativas de ver a partir da perspectiva de Deus ou de “pensar as verdades de Deus segundo ele”, como disse certa vez o teólogo Louis Berkhof. Deus ocasionalmente nos convida a ver as coisas de sua perspectiva, mas, na maioria das vezes, os profetas — incluindo Jesus — suplicam que vejamos o que Deus está tentando nos mostrar.

Ver é crer

Apesar da linha de abertura de Hebreus 11 e de seu apelo comumente interpretado para termos “convicção das coisas que não são vistas” (uma tradução melhor poderia ser “a prova das coisas que não vistas”), os autores bíblicos parecem entender que as crenças devem resistir a desafios por evidências. Essa é a espinha dorsal, e nada dramática, do que eles chamam de “confiança” (muitas vezes traduzida por “fé”, que tem um significado decididamente diferente no inglês moderno).

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Lembre-se de que Deus regularmente fornece evidências, quando as pessoas lhe pedem para ser convencidas. Quando Abrão perguntou: “Como posso saber?”, Deus respondeu com um pacto e as palavras “sabendo disso” (Gn 15.8,13, tradução do autor). Quando Moisés desafiou a Deus com a certeza de que os hebreus não ouviriam sua voz, Deus respondeu com sinais e maravilhas que convenceram Moisés, depois Arão, depois os anciãos, depois Israel e muitos dos egípcios (Êx 4.1-9, 28-31; 9.20).

O mesmo vale para Israel no Egito (Êx 14.30-31), os filhos de Israel que conquistariam Canaã (Js 1-4), o juiz Gideão (Jz 6.11-40), o povo de Israel a respeito do profeta Samuel (1Sm 3.19-21), o Israel do Segundo Templo na Galileia Romana (Mt 4.23), os judeus na Diáspora (At 17.1-15) e os gentios no Império Romano (At 16).

Ao longo das Escrituras, Deus raramente, ou mesmo nunca, puxa a cortina para revelar toda a circunstância conspirada de alguma realidade presente. Em vez disso, Deus oferece evidências para convencer as pessoas de que ele e seus profetas são confiáveis e bons. Só então ele pede a essas mesmas pessoas que confiem nele, a fim de que se tornem o tipo de pessoa que ele usará para abençoar todas as famílias da terra. Em suma, Deus pede uma “fé” focada no futuro, enraizada na prova empírica do que ele já fez.

Ao longo das Escrituras, Deus raramente, ou mesmo nunca, puxa a cortina para revelar toda a circunstância conspirada de alguma realidade presente. Em vez disso, Deus oferece evidências para convencer as pessoas de que ele e seus profetas são confiáveis e bons.

Hoje, as melhores discussões sobre como saber algo com precisão geralmente acontecem no campo da ciência ou em outras áreas de aprendizado de alta performance. Mas as Escrituras falam muito sobre como fomos designados para conhecer nosso mundo — desde o conhecimento no Jardim do Éden (Gn 2-3) até a compreensão dos mistérios do reino de Deus (Mc 4.11).

Os autores bíblicos encharcaram seus relatos com métodos e descrições de erros, todos eles preocupados com questões sobre como podemos saber, como a confiança é conquistada e advertências sobre o pensamento ingênuo de que descobrimos o que está acontecendo por trás da cortina. Deixar de entender as esferas conceituais da Bíblia, mesmo para os discípulos de Jesus, sempre levou a uma compreensão tênue ou ingênua de nosso próprio mundo hoje.

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Os cristãos têm a oportunidade de reinvestir na vida intelectual da igreja perguntando, em comunhão com outros crentes: Quem tem nos levado a compreender a natureza da realidade? De que modo sou pecaminosamente tentado em relação a certas explicações? E o mais importante: minhas crenças tornaram-se resistentes às evidências ou à argumentação? Se Deus está disposto a usar evidências, a fim de estabelecer sua própria credibilidade e argumentar com seu povo, então devemos ao menos estar dispostos a considerá-las.

As conspirações certas

Os autores da Bíblia não eram ingênuos — eles sabiam que algumas conspirações, evidentemente, revelaram-se verdadeiras. Mas as Escrituras demonstram um interesse notável em orientar sobre como devemos chegar à verdade.

O que Deus fez, quando ouviu falar de uma conspiração em toda a cidade para explorar e agredir estrangeiros? Ele foi e investigou. Quando Deus ouviu um relato de injustiça, a Bíblia descreve que ele enviou mensageiros (anjos) para determinar se aquilo era verdade (Gn 18.21).

A título de esclarecimento, não precisamos fazer suposições quanto a Deus precisar “ver por si mesmo” para saber. Antes, os autores bíblicos se sentiam à vontade para retratar Deus investigando o assunto pessoalmente como uma boa maneira de buscar justiça.

Deus esperava o mesmo de Israel. Suas instruções a Israel exigiam que eles confirmassem os relatos de violação da lei. Se há relatos sobre idolatria em alguma aldeia israelita, Deuteronômio exige: “Vocês devem inquirir, sondar e investigar a fundo. E se for verdade e se ficar comprovado [...]” (13.14, NIV).

Na verdade, há uma área em particular em que a Bíblia nos instiga a investigar acobertamentos e conspirações: onde quer que haja injustiças contra populações vulneráveis. Muitas conspirações comuns desse tipo se ocultam pelos cantos sombrios de nossas comunidades, sob a forma de crianças exploradas, homens e mulheres vítimas do tráfico humano, minorias e imigrantes perseguidos e idosos esquecidos. O abuso de poder contra “viúvas, órfãos e estrangeiros” dos dias de hoje não faz distinção por país nem por status socioeconômico.

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À medida que investigamos conspirações perniciosas como essas, Deus nos usará para ajudar outros a verem seu reino. É aí que reside a boa conspiração que devemos espalhar: o reino chegou, e ainda está chegando, nas vidas comuns das pessoas negligenciadas em nossas comunidades. Mas isso também significa que há outras conspirações — menores — que irão competir e nos desviar do ponto em que Deus está tentando concentrar nossos esforços.

Se estivermos ocupados trabalhando na missão do reino vindouro, não teremos muito tempo nem energia para teorias da conspiração chamativas — e fingir que podemos levantar a cortina da história e discernir os sinais exatos da vinda do rei parece algo leviano, na melhor das hipóteses. A mãe e o pai de Provérbios 1-9 não ensinam seus filhos a discernirem os sinais conspiratórios dos tempos. Em vez disso, eles suplicam: Ouça, meu filho, inclina o ouvido.

Dru Johnson é o diretor do Center for Hebraic Thought e ensina estudos bíblicos e teologia no The King’s College, em Nova York. Seus livros recentes incluem Human Rites: The Power of Rituals, Habits, and Sacraments (Eerdmans) e Scripture’s Knowing (Cascade).

Traduzido por Mariana Albuquerque

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