O marcionismo é uma heresia, mas entendo por que Marcião a elaborou.

Desgostoso com o mal que assola o mundo e lutando com formas confusas como Deus é apresentado nas Escrituras, o teólogo do segundo século fatiou a Bíblia a seu gosto, excluindo todo o Antigo Testamento e, até mesmo, parte do Novo. Não posso aceitar o projeto de edição de Marcião, mas certamente percebo a tensão que o levou a desenvolvê-lo: o Antigo Testamento é difícil, cheio de histórias e pessoas complicadas. De muitas maneiras, seria mais fácil ir para fora do cânon a fim de escapar com segurança de suas passagens estranhas e sombrias.

Suspeito que o produto final de Marcião possuía uma clareza de que a versão integral francamente carece. Mas também suspeito que isso deixaria os cristãos muito menos equipados para lidar com a ambiguidade moral que não podemos eliminar do passado de nossa sociedade - ou de seu presente.

Este tem sido um tempo de iconoclastia. Os protestos desencadeados pela morte de George Floyd nas mãos de policiais de Minneapolis pegaram o impulso catártico de manifestações anteriores contra a brutalidade policial e a desigualdade racial. Os manifestantes exigiram a remoção de estátuas e bandeiras confederadas - ou, em muitos casos, simplesmente as vandalizaram. Então, o escrutínio aumentou. Há apenas três anos, o presidente Donald Trump foi amplamente ridicularizado por sua reflexão de que iconoclastas progressistas eventualmente perseguiriam George Washington ou Thomas Jefferson. Este ano eles fizeram exatamente isso. Monumentos de outras figuras históricas (incluindo Abraham Lincoln, Teddy Roosevelt e Ulysses S. Grant) foram demolidos, tiveram votação positiva para sua derrubada ou se tornaram objeto de debates polêmicos.

Esses conflitos não são fáceis de resolver. O que pensamos de alguém como Jefferson? Ele deve ser honrado ou deplorado? Ele escreveu sobre os direitos inerentes de toda a humanidade em palavras que inspiraram movimentos pela liberdade em todo o mundo, mas, ao mesmo tempo, escravizou centenas e estuprou Sally Hemings, engravidando-a quando ela tinha cerca de 15 anos.

Jefferson condenou a escravidão, mas não agiu para acabar com ela, mesmo rejeitando, como o colunista Noah Millman descreve, “uma grande herança de seu velho amigo, o nobre polonês e herói da Guerra Revolucionária Thaddeus Kosciusko, destinada à compra de escravos para dar-lhes a liberdade, junto com a terra, o gado e o equipamento agrícola para permitir que vivam a vida de independência rural, que Jefferson alegou favorecer em relação a todos os outros”. E, no entanto, apesar de tudo isso, o abolicionista Frederick Douglass considerou a Declaração de Independência de Jefferson “a chave da corrente do destino de [nossa] nação”, um documento de “princípios salvadores” aos quais devemos ser fiéis “em todas as ocasiões, em todos os lugares, contra todos os inimigos e a qualquer custo.”

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Há uma agradável simplicidade ética na ideia de levar a faca afiada de Marcião a figuras históricas como Jefferson (que era, curiosamente, ele próprio um tanto marcionista). Jogá-lo fora por causa de seus pecados mais grosseiros ou encobri-lo com suas palavras maravilhosas? Não ousamos nos contentar com menos do que pureza ideológica. Um herói perfeito é o tipo mais confortável.

Os cristãos podem fazer melhor. O Antigo Testamento nos treinou para isso. Se Jefferson é a figura arquetípica difícil da história americana, seu análogo bíblico é certamente o rei Davi: o salmista apaixonado e poético que estuprou Bate-Seba. O que achamos de alguém como Davi? Não há a opção, aqui, de guardar as palavras e dispensar o homem, porque o homem está em toda a Bíblia. Repetidamente, os evangelhos reiteram que Jesus é o “filho de Davi” havia muito esperado, nascido na aldeia de Davi e destinado a se sentar no trono de Davi. Davi aparece no grande argumento do apóstolo Paulo sobre a justificação, em Romanos, e também faz parte da lista de Hebreus 11 dos heróis da fé (cheios de falhas). Em Apocalipse 22.16, Jesus confirma seu testemunho com uma autodescrição: “a raiz e o descendente de Davi, a brilhante estrela da manhã”. Ter uma visão elevada das Escrituras nos força a confrontar a complexidade moral de Davi junto com tantos outros personagens da Bíblia, sem descartá-los por causa de seus pecados nem encobrir esses mesmos pecados com suas realizações fiéis. Esse confronto serve de prática para um discernimento semelhante da história mais recente.

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Além disso, não somos os primeiros cristãos a lidar com pessoas, histórias e ideias complicadas. A igreja primitiva lidou com isso com frequência. Muitos dos primeiros apologistas cristãos empregaram a religião e a filosofia da cultura pagã circundante para ajudar a compreender a nova fé cristã. O sermão de Paulo em Atos 17 é um exemplo disso. Ele faz referência a monumentos atenienses e incorpora percepções de poetas gregos, apontando para a Escritura. Da mesma forma, Agostinho aconselhou os cristãos a “reivindicar [...] para nosso próprio uso” tudo o que encontrarmos “que seja verdadeiro e em harmonia com nossa fé”, onde quer que encontremos. “Toda verdade é a verdade de Deus”, afirma a lógica agostiniana. Podemos examinar nossa história atual com um olhar semelhante: crítico e distante por um lado, mas também receptivo a qualquer bondade e verdade que encontrarmos no outro.

Finalmente, a antropologia cristã básica também nos prepara para lidar com a tensão histórica. “Os guerreiros da cultura querem evitar [...] dissonância cognitiva ao ver os fundadores como santos perfeitos ou pecadores irredimíveis”, escreveu recentemente o ex-editor da CT, Skye Jethani. “Eles não eram nem um nem outro”, continuou ele, o que deveríamos saber bem. As duas primeiras informações que a história cristã dá sobre a humanidade (Gênesis 1-3) é que fomos feitos à imagem de Deus e estamos sujeitos à queda. Fomos criados para o bem, mas, sem Cristo, somos cativos do mal (Rm 6.17-23). A compreensão dos seres humanos a partir desse princípio evita que se fique chocado ao encontrar o verdadeiro bem e o grande mal na mesma vida, como, de fato, encontramos ambos em nosso próprio coração (Rm 7.19).

Bonnie Kristian é colunista da Christianity Today, editora colaboradora da The Week, bolsista da Defense Priorities e autora de A Flexible Faith: Rethinking What It Means to Follow Jesus Today (Hachette).

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The Lesser Kingdom
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Bonnie Kristian
Bonnie Kristian is the editorial director of ideas and books at Christianity Today. She is the author of Untrustworthy: The Knowledge Crisis Breaking Our Brains, Polluting Our Politics, and Corrupting Christian Community (2022) and A Flexible Faith: Rethinking What It Means to Follow Jesus Today (2018) and a fellow at Defense Priorities, a foreign policy think tank. Bonnie has been widely published at outlets including The New York Times, The Week, CNN, USA Today, Politico, The New Atlantis, Reason, The Daily Beast, and The American Conservative. She lives in Pittsburgh with her husband, daughter, and twin sons.
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