Certa vez, uma pessoa que cresceu em uma tradição religiosa mais liberal do que a minha me disse que os sermões em sua igreja eram sempre entediantes, especialmente no domingo de Páscoa. “Esse era o dia em que o pastor tinha que tratar da Ressurreição”, uma doutrina em relação a qual ele era, na melhor das hipóteses, melindroso e, na pior, cético. “Tínhamos de esperar para ver em qual metáfora a Ressurreição iria se transformar — em um ano, a metáfora foi o recomeço de vida, em outro, a importância da reciclagem, ou qualquer outra coisa desse tipo.” Uma explicação secularizada da Ressurreição de fato não tem a força daquilo que ela realmente é (e esse é o menor de seus problemas).

Nós, cristãos evangélicos, provavelmente não secularizaremos nossas crenças sobre a Ressurreição, mas estamos bem encaminhados no sentido de secularizar outra coisa: a guerra espiritual.

Alguns, que são de fora da igreja, têm uma visão incorreta da guerra espiritual, como se fosse uma inovação recente que remonta a C. Peter Wagner e às aulas de crescimento de igreja do Seminário Fuller, na década de 1970 (vinculando-a, portanto, à Nova Reforma Apostólica) ou à obra This Present Darkness [Este mundo tenebroso, na versão em português], de Frank Peretti, bem como a outros romances da década de 1980.

Mas o conceito de guerra espiritual foi firmemente estabelecido em todas as épocas e alas da igreja cristã, desde antes de Santo Antônio lutar com demônios no deserto, até chegar ao próprio Novo Testamento.

Hoje em dia, o que não falta é cristão falando de guerra espiritual. Mas ouça com atenção e você perceberá algo: raramente essa linguagem de guerra é direcionada a espíritos malignos. Em vez disso, ela geralmente é empregada para descrever a oposição ideológica contra outros seres humanos. “Isso é guerra espiritual!”, ouvimos, como introdução a um chamado às armas em relação a algum posicionamento político ou social. Mas essa maneira de conceber a guerra espiritual revela um desencanto significativo com o mundo da Bíblia.

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Além disso, nossa fusão de guerra espiritual com guerra cultural comunica justamente o oposto da mensagem da Bíblia, tanto em termos de quem são nossos inimigos quanto de como travar a batalha. O apóstolo Paulo nos disse que “a nossa luta não é contra sangue e carne, mas contra os poderes e as autoridades, contra os dominadores deste mundo de trevas e contra as forças espirituais do mal nas regiões celestiais” (Efésios 6.12, ESV).

De acordo com os apóstolos — e com o próprio Jesus —, existem de fato seres espirituais malignos no universo, geralmente imperceptíveis para nós. Esses seres querem nos prejudicar. Eles não são nossos pares, ou seja, não são seres humanos portadores da imagem de Deus. Até mesmo o ser humano mais hostil ao evangelho, à igreja ou à ordem moral pode um dia ser nosso irmão ou irmã em Cristo (2Coríntios 5.11—6.2). Saber disso nos liberta para nos enfurecermos contra o velho réptil do Éden, mas nos constrange a sermos gentis com sua presa (2Timóteo 2.23-26).

A maneira de travarmos uma batalha espiritual contra o Diabo é perceber como ele opera: por meio do engano (Gênesis 3.1-5) e da acusação (Apocalipse 12.10). Não combatemos essa guerra com o som e a fúria de um conflito tribal, mas com as mesmas armas que nossos antepassados usaram: “pelo sangue do Cordeiro e pela palavra do testemunho que deram” (Apocalipse 12.11). É o evangelho que desfaz a obra das forças do mal.

Não devemos ver a guerra espiritual da mesma forma que vemos a pseudoguerra de nossa era fragmentada. E não devemos disparar salvas de tiros “lá fora” contra nossos inimigos; em vez disso, devemos nos concentrar aqui. Pois só é possível enfrentar o Diabo, escreveu Paulo, vestindo “toda a armadura de Deus”. E ele definiu essa armadura não como argumentos destinados a humilhar, isolar ou exilar os oponentes, mas como um cultivo de si mesmo pelo Espírito de Deus, por meio do evangelho, da Bíblia, da oração e da igreja (Efésios 6.10-20).

Talvez os nossos próximos do mundo secular achem estranho e medieval o fato de realmente acreditarmos nas velhas histórias de um “mundo cheio de demônios”. Mas acreditamos em coisas muito mais estranhas do que essa. Acreditamos nas palavras que Martinho Lutero nos ensinou a cantar:

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O príncipe das trevas é sombrio,

por ele não trememos;

Sua fúria podemos suportar,

pois eis que seu destino é certo;

uma pequena palavra o derrubará.

Que o Diabo vá para o inferno. Vamos nos lembrar da boa nova de que o pé [que esmagará] a cabeça da velha serpente tem marcas de pregos. Isso é guerra espiritual de verdade. Essa é uma batalha que vale a pena lutar — uma batalha que, na verdade, já foi vencida.

Russell Moore é editor-chefe da Christianity Today.

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