A mitologia grega pode não ser um guia para a vida cristã, mas eu aprecio as observações inteligentes que essas histórias antigas nos oferecem. Recentemente, lembrei-me de Narciso, o jovem que negligenciou todos os outros amores e necessidades físicas para poder ficar olhando incessantemente para o próprio reflexo. Na versão mais comum da história, Narciso acaba morrendo sentado à beira de uma fonte d'água — a conclusão trágica e irônica de seu amor egocêntrico.

A antiga comédia de humor negro ainda se aplica — talvez de modo especial — aos nossos ego e orgulho modernos. Se quisermos cultivar a humildade nos dias de hoje, teremos mais do que somente fontes e espelhos para enfrentar.

Somos portadores da imagem de Deus. No entanto, com a ajuda de nossos celulares e das mídias sociais, muitos de nós passamos tempo demais admirando nossos reflexos, mais tempo até do que Narciso passava, e certamente mais tempo do que as pessoas já passaram em qualquer outro momento da civilização. A esmagadora maioria dos adultos americanos de hoje possui smartphones. E com bilhões de dispositivos móveis em circulação por todo o mundo, a situação é igual em muitos outros países. Somos a sociedade das selfies, incentivados a nos ver e a postar sobre nós mesmos com frequência, na esperança de atrair mais curtidas e impulsionar nossa “marca” pessoal.

Nós nos esquecemos do perigo de Narciso. Mas também nos esquecemos da graça que se manifesta em sua história: depois que Narciso morre, ele é transformado em flor.

No final do verão passado, fiz um show em uma rústica fazenda de flores no estado de Washington, no período em que as dálias estavam em plena floração. Fileiras e mais fileiras de pompons espetaculares balançavam como fogos de artifício de veludo, brotando das robustas hastes verdes. Com violão, piano e bateria, cantamos ao pôr do sol sob uma tenda branca; comunidade e músicos se uniram para elevar nossas vozes por sobre aquele mar de flores. Partilhamos uma consciência palpável do acolhimento por Deus. Era como estar em uma igreja no campo.

Depois da apresentação, uma garotinha me trouxe um punhado de flores alvoroçadas e recém-cortadas: flores roxas em forma de globos, flores cor-de-rosa que pareciam uma profusão caótica de cravos, dálias anêmonas formando camadas de lavanda sobre o branco. Fiquei encantada com as flores e com a gentileza da garotinha. Conversamos um pouco sobre como cada uma delas é diferente e vibrante como nós, refletindo a arte de Deus.

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Jesus disse a seus amigos: “Observem como crescem os lírios. Eles não trabalham nem tecem. Contudo, eu lhes digo que nem Salomão, em todo o seu esplendor, vestiu-se como um deles” (Lucas 12.27).

As flores não pensam nada sobre si mesmas; elas simplesmente são. Tom Petty as apresentou como símbolo de uma existência sem preocupações, quando cantou: “You belong among the wildflowers” [Seu lugar é em meio às flores do campo]. Essas lindezas florescem e dançam ao vento e trazem deleite ao Senhor, a nós e às abelhas. Se isso é o que Deus faz com a grama do campo, sugere Lucas, quanto mais ele pode fazer conosco?

No mito, Narciso tem um triste fim. Mas talvez também seja misericórdia.

A graça é como uma lente que nos ajuda a saber para onde olhar — não para nossos reflexos, mas para a glória de Deus, que aparece até mesmo em nossa vida comum. Os céus dão testemunho dessa glória agora mesmo (Salmos 19), e vê-la pode nos ajudar a encontrar nosso lugar como parte importante da bela criação de Deus.

As flores frescas podem murchar, mas não são menos importantes por terem limites. Quando fecho os olhos, ainda consigo ver aquelas dálias em minha mente, e elas me fazem pensar: Que flores Deus tem para que eu me deleite neste momento? Que música devo cantar nesta estação? E quem é a Fonte celestial sobre a qual a autora de hinos Anne Steele fez estes versos?

Tu, Fonte adorável de verdadeiro deleite, A quem adoro sem ver! Revela tuas belezas para meus olhos, Para que ainda mais eu possa te amar.

Olhar apenas para nós mesmos e passar a vida cativados por nosso próprio brilho frágil é, na verdade, morrer. E a morte é sempre uma tragédia. Ver Deus, no entanto, é ver a ressurreição e a nova vida.

A vida de ressurreição floresce pela graça. E nos liberta para pensarmos menos em nós mesmos.

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Quando olhamos para Jesus, buscando nos lembrar mais plenamente de nosso verdadeiro valor, nós nos libertamos do frívolo autorreflexo, sabendo, em vez disso, que pertencemos à única Fonte de verdadeiro deleite. Podemos nos doar, como canções em um campo de dálias. Podemos nos multiplicar lindamente, sem nenhuma necessidade de contemplar nossa própria beleza, pois somos lembrados e vistos por aquele que mais importa.

Sandra McCracken é cantora, compositora e autora em Nashville. Ela também é a apresentadora do podcast The Slow Work, produzido pela CT.

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