“Irmãos, deixem de pensar como crianças” (1Coríntios 14.20) A admoestação de Paulo aos coríntios é ainda mais urgente para nós, nos dias de hoje. Embora os cristãos devessem ser como crianças com respeito ao mal, ele insistia que deveriam ser adultos quanto ao modo de pensar. Para tanto, Paulo constantemente procurava ensinar às pessoas não apenas o que pensar, mas como pensar. Isso continua sendo vital. As várias disciplinas agrupadas sob o título de “teologia” ou “divindade” estão em posição única para dar continuidade a este projeto.

As pessoas hoje em dia costumam comentar sobre o declínio do diálogo civilizado e racional em todas as esferas da vida. A teologia tem uma oportunidade de dar o exemplo desse diálogo genuinamente interdisciplinar do tipo que precisamos tão urgentemente, até porque, em razão de sua própria natureza, deveria preencher a lacuna entre a academia e o mundo mais amplo.

Os grandes teólogos do passado — como Agostinho, Tomás de Aquino, Lutero e Calvino — tentaram trazer a Bíblia, a filosofia e a teologia para um diálogo compartilhado. À medida que cada um desses campos avança, eles precisam ainda mais um do outro.

O desafio do nosso tempo

Apesar do que pensam os críticos cínicos, a fé cristã está crescendo e se expandindo. O Pew Research Center estima que haverá 3 bilhões de cristãos até 2050, a maioria deles em países com poucas oportunidades de educação superior ou complementar e com oferta mínima de seminários. Contudo, sem estudo teológico rigoroso, no sentido mais amplo, a igreja global ficará vulnerável a ensinos distorcidos ou desequilibrados. Em particular, não estará preparada para abordar os grandes questionamentos que o mundo em geral está fazendo e que surgem com novas roupagens a cada geração e a cada mudança cultural.

Os mais familiarizados com alguns dos escritos teológicos e estudos bíblicos de teor mais negativo das gerações anteriores, muitas vezes de tom cético e destrutivo, podem se perguntar se algo de útil pode agora vir de tais disciplinas.

Além disso, a especialização acadêmica cada vez maior fez com que as diferentes disciplinas continuassem a caminhar isoladas. O estudo bíblico, incluindo a teologia bíblica, muitas vezes opera como se as teologias sistemática, histórica e filosófica não existissem. Os teólogos, por sua vez, ignoram os estudos bíblicos históricos, em geral com a desculpa de que estão estudando Tomás de Aquino ou Agostinho (ou quem quer que seja) e que, como esses grandes homens leram suas Bíblias intensamente, isso já é o suficiente.

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Assim, de forma nada surpreendente, quando estudiosos de diferentes áreas participam dos seminários uns dos outros, às vezes nos perguntamos o que será que está acontecendo. Isto é um problema tanto para as disciplinas em si quanto para um tipo de estudo teológico mais voltado para fora, que possa servir de auxílio, em termos criativos e construtivos, tanto para as igrejas quanto para o cristão comum em todo o mundo. Devemos abordar esses problemas se quisermos aproveitar as oportunidades diante de nós.

Quarenta anos atrás, a maioria dos filósofos acadêmicos teria rido da sugestão de que o teísmo cristão pudesse explicar e abordar as grandes questões da vida, do mundo, do sofrimento e assim por diante. Esse riso se transformou em apreciação, à medida que o ateísmo assumido do passado agora parece mais problemático.

Um novo movimento, a “teologia analítica”, surgiu da tradição da filosofia analítica, anteriormente cética. Ainda em seus estágios iniciais, esse movimento usa as ferramentas afiadas do pensamento crítico para expressar a fé, em vez de desconstruí-la. Busca a transparência, a responsabilidade, a clareza de expressão, a análise rigorosa e a argumentação lógica.

Da mesma forma, muitos teólogos, nas décadas de 1960 e 1970, assumiram uma crítica “iluminista” das crenças tradicionais. Hoje, muitos voltaram os holofotes céticos para o próprio Iluminismo, propondo novas maneiras de expressar velhas crenças.

O mesmo é verdade, ao menos em parte, em relação aos estudos bíblicos. Alguns estudiosos do passado tentaram reduzir a Bíblia para que se adequasse aos pressupostos do século 18. Agora, esses próprios pressupostos estão sob escrutínio — não de modo a que possamos voltar a um fundamentalismo irracional, mas para que possamos explorar com uma mentalidade mais aberta o que os textos estavam dizendo em seu próprio tempo.

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Todos esses são sinais de esperança. Ainda assim, sem uma tentativa de integração, eles podem acabar cada um cantando a sua parte sozinho, no seu canto, em vez de se juntarem para formar uma rica harmonia que poderia remodelar a melodia da fé em todo o mundo. Costumamos dizer que damos valor ao trabalho interdisciplinar, mas poucos são os acadêmicos que têm tempo ou interesse de olhar para além de seus próprios campos de estudo.

Alguns programas, no entanto, estão trabalhando para integrar a teologia com outras disciplinas, entre eles, por exemplo, os da Duke Divinity School, do Fuller Seminary e do Wheaton College, nos Estados Unidos; os das Universidades de Durham e de Oxford, na Grã-Bretanha; e os da Universidade de Innsbruck, na Áustria. Mas poucos programas de estudo atendem ao que tanto precisamos: uma colaboração entre os estudiosos da Bíblia, da filosofia e da teologia.

Sinais de esperança

Na própria instituição em que atuo, a Universidade de St Andrews, o recém-fundado Logos Institute for Analytic and Exegetical Theology [Instituto Logos para Estudo das Teologias Analítica e Exegética] está tentando fomentar esse tipo de colaboração. O instituto oferece uma abordagem única para o estudo teológico, na qual traz a teologia sistemática, o estudo bíblico e a filosofia para um diálogo.

O objetivo é abordar as grandes questões da fé no mundo mais amplo. O que significa a palavra Deus? A quem ou a que a palavra pode se referir? O que significa ser humano? O que podemos e devemos dizer sobre Jesus? E sobre a criação — sobre a origem do mundo e sobre o próprio mundo? O que as alegações cristãs tradicionais sobre a reconciliação realmente significam na prática, bem como na teoria? E, em meio a tudo isso: Como adquirimos conhecimento? Existe algum tipo de conhecimento cristão específico, só para cristãos, ou qualquer pessoa pode participar?

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Muito da teologia sistemática recente chegou a essas questões de forma oblíqua, enquanto estudava as grandes mentes do passado. Isso é vital. Não podemos reinventar as rodas que nos foram legadas por autores do passado, mesmo que alguns dos eixos possam estar danificados e que possam faltar alguns raios.

Da mesma forma, os especialistas bíblicos às vezes insinuam que, uma vez que descobrimos o que Mateus, Oseias ou quem quer que seja estava realmente dizendo, damos por encerrado nosso trabalho. Isso ainda pode deixar o leitor se perguntando o que essas ideias antigas podem significar para o mundo de hoje, tão diferente.

Claro, aqueles que acreditam na autoridade das Escrituras afirmam que a Bíblia está em um patamar mais elevado do que o dos teólogos subsequentes, por mais veneráveis que sejam. Mas colocar em prática o que isso significa requer muitas mentes envolvidas no trabalho. Felizmente, agora estamos vendo muitos estudiosos importantes abordarem esse desafio. Esse é mais um sinal de esperança.

Por exemplo, o Logos Institute conseguiu envolver em seu ensino e em suas discussões teólogos como Oliver Crisp, Sarah Coakley, Tom McCall, Alan Torrance e Andrew Torrance; teólogos filosóficos como C. Stephen Evans, Eleonore Stump, Peter van Inwagen, Linda Zagzebski e Mike Rea; e exegetas como David Moffitt, Amy Peeler e Richard Bauckham.

O diálogo gerado entre esses estudiosos está inspirando uma nova geração de jovens teólogos. Entre eles,há um contingente significativo de mulheres — lembrando que as mulheres, durante a maior parte da história da igreja, não foram incentivadas a participar do ensino nem da pesquisa teológica. Sob a liderança de Christa McKirland, fundamos a Logia, uma organização irmã dentro do Logos Institute, que incentiva acadêmicas mais jovens, ao modelar um envolvimento teológico de alto nível.

Nossa tarefa, portanto, é entender das maneiras mais claras, rigorosas e profundas que pudermos — a partir da Bíblia e no âmbito da teologia cristã — o que exatamente a fé cristã ensina. Para isso, precisamos do que há de melhor no pensamento de várias disciplinas, no contexto de uma comunidade diversificada. Os resultados de tal estudo precisam ser interpretados em relação a todos os demais aspectos da vida e disseminados apropriadamente em nosso mundo, tantas vezes confuso, que regularmente lança novas questões, ao mesmo tempo em que retoma as antigas.

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As três disciplinas

O que acontece, quando exegetas, teólogos e filósofos abordam as grandes questões sobre Deus e o mundo através de todas essas lentes em conjunto?

Primeiro, a Bíblia

Teólogos e filósofos cristãos em geral alegam que seu pensamento é fundamentado nas Escrituras. Mas eles raramente dedicam ao texto o tipo de atenção mais próxima que se espera dos estudos bíblicos contemporâneos. Pode ser que isso se deva em parte ao ensino pouco útil sobre a Bíblia que alguns deles receberam, mas ainda assim é lamentável. O envolvimento dos teólogos com as Escrituras muitas vezes recai em textos-prova, com pouca consideração pelos mundos de pensamento dos autores e suas intenções originais.

Isso pode permitir que a teologia e a filosofia cristãs acabem em mera especulação, fundamentadas em nada mais do que as intuições do pesquisador e em algumas partes da tradição pós-bíblica. As inadequações desse método são evidentes: é como tentar regar um jardim, depois de ter primeiro desconectado a mangueira da torneira. Pode ter restado um pouco de água na mangueira, mas não vai muito longe.

A erudição bíblica contemporânea tem, na realidade, produzido muitos novos e empolgantes insights que teólogos e filósofos poderiam captar e desenvolver. Meu próprio trabalho, especialmente sobre Jesus e Paulo, enfoca muitas questões que se encaixam diretamente em questões teológicas mais amplas. Poucos teólogos se tornarão especialistas em erudição bíblica; a perícia bíblica, porém, deve ocupar seu lugar à mesa da teologia. Como em toda pesquisa científica inovadora, o trabalho em equipe colaborativo é o nome do jogo.

A teologia

O contrário também é verdade: os estudiosos da Bíblia precisam se envolver com os teólogos. As exigências do estudo especializado tornam isso difícil. Os especialistas bíblicos costumam ficar nervosos com o que consideram generalizações a-históricas. Mas os próprios autores bíblicos nunca pretenderam fornecer um mero diário de suas reflexões pessoais. Eles escreveram em fé e obediência, para edificar e dirigir o povo de Deus. A boa pesquisa histórica deve levar isso em consideração.

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A história, afinal, envolve sondar as mentes de pessoas que pensam diferente de nós, e esse esforço sempre envolve imaginação empática. Dessa espiral constante de deleite e conhecimento surgem regularmente tanto o sentido do texto, como algo diferente de nós mesmos, quanto o sentido do texto que, no entanto, dirige-se a nós e, por meio de nós, ao mundo que nos cerca. E, como acontece com todos esses eventos mentais e espirituais, esta é uma rica combinação entre arte e ciência.

Neste ponto, o estudioso da Bíblia não pode ignorar o fato de que os teólogos travaram uma luta com esses significados mais amplos antes de nós, tendo já elaborado estruturas mais amplas de ideias e refinado pontos específicos. A teologia, ela própria alimentada pela pesquisa bíblica, retroalimenta a erudição bíblica: levantando questões, questionando pressupostos, tentando interpretar todas as implicações dos sentidos originais e procurando colocar tudo isso em diálogo com as principais questões de nossos dias.

A filosofia

O pensamento cristão construtivo e missional precisa se comunicar para além da igreja, no âmbito do mundo secular mais amplo. Aqui, os filósofos — e de forma mais ampla os críticos culturais — podem prestar um serviço inestimável, ao avaliar as questões críticas levantadas pelas alegações cristãs. Um bom exemplo é a maneira pela qual os filósofos cristãos ajudaram os crentes a enfrentar as objeções levantadas pelos “quatro cavaleiros” do ateísmo moderno (Richard Dawkins, Christopher Hitchens, Daniel Dennett e Sam Harris).

Existem também os conhecidos desafios modernos: O que podemos dizer sobre outras religiões, por exemplo, e como abordamos o constante problema do mal? Depois, há questões do conhecimento em si: Quando alguém cita a afirmação “Eu sei que meu Redentor vive”, que tipo de conhecimento é esse, e ele pode ser justificado? Os filósofos cristãos fizeram um trabalho espetacular em consolidar o poder explicativo incomparável do teísmo cristão e em abrir novas perspectivas para os teólogos explorarem.

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Em suma, cada uma dessas três disciplinas tem um papel vital a desempenhar na vocação do pensamento cristão. Se quisermos nos envolver de forma fiel e responsável com as alegações de verdade que estão no cerne da fé cristã, é crucial que mais mulheres e homens busquem esse diálogo interdisciplinar entre os diferentes campos do conhecimento. Um estudo mais focado continua sendo vital, mas a discussão teológica contemporânea fica seriamente prejudicada quando a especialização se transforma em isolamento. Pelo bem da igreja, a minha esperança é que isso possa mudar.

N. T. Wright é professor de Novo Testamento e cristianismo primitivo no St Mary's College, na Universidade de St Andrews, na Escócia. Seu último livro é Paul: A Biography (HarperOne, 2018).

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