“O que está fazendo? Será que, nesses livros que você lê, alguma vez é dito que mulheres participaram desse tipo de discussão?”. Essa pergunta direta e um tanto estranha vem da mãe de Agostinho, Mônica, quando descobre que o filho está registrando comentários dela no livro "De Ordine". Ela fica mais consternada do que honrada com a censura que sua inclusão pode trazer a ele. Em resposta, Agostinho admite que alguns podem criticá-lo por incluir a voz de uma mulher em seus escritos. Mas ele não dá a mínima para essas críticas, e afirma que tais “homens arrogantes e ignorantes” deveriam dar mais atenção à substância e menos às “vestes” do que leem.

Embora ele espere que algumas pessoas de mentalidade superficial o desprezem por incluir ideias de uma mulher, Agostinho incorpora as contribuições de Mônica pela excelência de suas ideias. Ele deseja que ela participe da discussão porque suas inclinações espirituais e seu talento intelectual a tornam indispensável. Agostinho escreve sobre a mãe: “Pela longa intimidade e atenção diligente, a essa altura eu já havia percebido sua perspicácia e seu desejo ardente pelas coisas de Deus [...] Percebi que sua mente é tão rara que nada parecia mais adequado à verdadeira filosofia. Consequentemente, eu estava determinado a fazer o meu melhor para que ela não ficasse de fora de nosso diálogo.” E, assim, por meio do relato de Agostinho, temos um vislumbre precioso dessa brilhante mãe da igreja.

Das poucas primeiras mulheres cristãs comumente conhecidas em nossos dias, Mônica, junto com sua quase contemporânea Macrina, são talvez as mais conhecidas. Mas, apesar dos registros que temos de seus extraordinários dons espirituais e intelectuais, elas não costumam ser conhecidas por suas habilidades pessoais. Em vez disso, essas mães da igreja do quarto século são famosas por associação. O filho pródigo de Mônica, Agostinho, tornou-se o pai da igreja ocidental. Gregório de Nissa e Basílio, os irmãos mais novos de Macrina, há muito são conhecidos, junto com o amigo Gregório de Nazianzo, como os Pais Capadócios. Esses homens, que tornaram Mônica e Macrina famosas, moldaram o pensamento teológico de toda a tradição cristã, dando formulação clássica a doutrinas que hoje consideramos básicas: as doutrinas da Trindade, da graça e do Espírito Santo.

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Como Eunice para Timóteo e Miriam para Moisés, Mônica e Macrina são grandes mulheres de fé que possibilitaram o ministério de grandes homens. A submissão à liderança espiritual, o ensino e a admoestação de Mônica e Macrina, que continuaram mesmo na idade adulta de Agostinho e Gregório, fizeram desses pais da igreja os gigantes que acabaram se tornando.

Mas o que podemos dizer sobre Mônica e Macrina como fiéis intérpretes da Bíblia por seus próprios méritos? Em ambos os casos, um aspecto menos conhecido, mas fundamental de seu legado, conforme retratado nos textos que chegam até nós, é seu trabalho como alunas e professoras da Palavra de Deus.

Mônica: Ouvindo a Palavra e falando sobre ela

Agostinho caracteriza sua mãe como uma mulher que valorizava e buscava as Escrituras na vida cotidiana. Em um interlúdio cômico de seu primeiro diálogo filosófico, De Ordine, ele conta como um de seus alunos havia aprendido recentemente um cântico do salmo 80.19. O jovem simplesmente não conseguia parar de cantar. Cantou pela manhã e seguiu cantando o dia inteiro. Ele continuou cantando, como conta Agostinho sutilmente, até mesmo quando “saiu para atender às necessidades da natureza”. Diante disso, Mônica bateu o pé, diz Agostinho, “justamente porque o lugar era impróprio para cantar”. O jovem respondeu, “brincando: ‘Como se Deus não fosse ouvir minha voz, caso algum inimigo me confinasse aqui!’. Para nossa sensibilidade moderna, a reprovação de Mônica pode parecer afetada, e até pudica. Mas essa pequena anedota, destinada a divertir, é um sinal jovial do enorme peso que Mônica atribuía às Escrituras. Ela desejava que a adoração e a Bíblia tivessem um lugar de honra na vida das pessoas ao redor.

Além de respeitar as Escrituras, Mônica ansiava por elas. Agostinho, dirigindo-se a Deus nas Confissões, nos fala do grande anseio de Mônica por ouvir a Palavra de Deus: “não participando de fofocas vãs nem da tagarelice de velhas, [ela queria] ouvir a ti em tuas palavras e falar contigo em suas orações”. Mônica confidenciou suas esperanças e seus anseios mais profundos ao Criador, derramando lágrimas diante dele enquanto orava diariamente, ano após ano, pela salvação de seu filho. Mas ela também queria ouvir a Deus em seus próprios termos.

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Mônica ouvia a Palavra de Deus por meio do culto cristão regular, frequentando a igreja duas vezes por dia. A Palavra pregada por seu conhecido pastor, Ambrósio, a fascinava, e ela “corria zelosamente para a igreja para ouvir atentamente [suas] palavras, para ‘a fonte de água que jorra para a vida eterna’ (Jo 4.14). ” Dado seu status social, também é provável que Mônica, ao contrário de muitas mulheres no mundo antigo, fosse alfabetizada e pudesse acompanhar as mensagens que ouvia na igreja com a leitura em casa. O envolvimento de Mônica com a Palavra, em adoração, era frequente, consistente e vivificante.

A atenta solicitude de Mônica em ouvir as Escrituras a preparou para incutir a verdade da Palavra de Deus na vida de seu amado filho Agostinho. Ele relata como sorver o nome de Cristo junto com o leite de sua mãe despertou-lhe um profundo apetite subconsciente pela Palavra. Quando leu a Bíblia pela primeira vez por si mesmo, ele a achou primitiva, mas sua atração era elementar. No final, Agostinho não conseguiu resistir. Quando o filho chegou à adolescência, Mônica mais uma vez provou ser veículo da Palavra de Deus. Vendo-o consumido pelo ardor de seus desejos adolescentes, ela tentou contê-lo. Na época, Agostinho desconsiderou seu conselho como “algo típico das mulheres”. Mais tarde, porém, ele percebeu que suas admoestações eram a própria voz de Deus. Olhando para trás com tristeza, ele orou: “Eu acreditava que tu estavas em silêncio, e que era apenas ela quem falava, quando tu falavas comigo por meio dela.”

Mônica continuou a incutir a Palavra de Deus na vida de Agostinho na idade adulta, como registrado em outro dos diálogos iniciais, Sobre a vida feliz. No final, Agostinho sugere que a vida feliz é conhecer o Deus triúno. Pegando a deixa, Mônica conclui com uma alusão a 1Coríntios 13.13: “Esta é sem dúvida a vida feliz, aquela vida perfeita para a qual podemos e devemos presumir que somos rapidamente trazidos por meio de fé sólida, esperança viva e amor ardente”.

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Já adulto e um cristão comprometido, Agostinho recebe com gratidão essas palavras biblicamente inspiradas de Mônica, deixando-as como declaração final de substância para um grupo maior de homens cristãos, reunidos para debater, bem como para os muitos leitores que a obra teria em sua própria geração e além.

Macrina: As Escrituras como ponto de partida

Assim como Mônica foi uma professora ensinada por Deus para Agostinho, Gregório de Nissa refere-se repetidamente a sua irmã mais velha, Macrina, simplesmente como “a mestra”. O diálogo sobre "A alma e a ressurreição", em que Gregório propõe questões críticas, enquanto Macrina defende a fé cristã, nos dá uma visão de como ela usava as Escrituras.

Nascida em uma família próspera, Macrina provavelmente teve uma boa educação, além da alfabetização básica. Na obra sobre "A alma e a ressurreição", ela traz suas habilidades intelectuais, inatas e aprendidas, para se apresentar com sofisticação e habilidade, em pé de igualdade com seus irmãos e outros líderes intelectuais do período. Na verdade, sua sabedoria era tamanha que seus irmãos constantemente a admiravam.

O livro começa com muita emoção. Gregório decidira visitar a irmã para transmitir a triste notícia da morte de seu irmão Basílio. Mas, assim que Gregório põe os olhos em Macrina, fica chocado ao ver que ela mesma não ficará muito tempo neste mundo. Depois de dar tempo a Gregório para expressar sua tristeza, Macrina “repreendeu-me com a afirmação apostólica de que não devemos lamentar por aqueles que estão dormindo, pois essa emoção pertence apenas a quem não tem esperança”. Essas palavras, de 1Tessalonicenses 4.13, são as primeiras de Macrina na obra. O uso que ela faz das Escrituras para intervir em uma crise familiar é apenas uma das muitas maneiras pelas quais ela se baseia na Bíblia, como professora de teologia.

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Macrina usa as Escrituras para estabelecer limites. Em suas palavras, “sempre usamos a Sagrada Escritura como o cânone e a regra de toda a nossa doutrina. Portanto, devemos necessariamente olhar para esse padrão e aceitar apenas o que é congruente com o sentido de seus escritos”.

No entanto, como mostra Macrina, esses limites tornam possível um engajamento construtivo e crítico com pontos de vista extrabíblicos. No diálogo, ela interage com uma grande variedade de ideias filosóficas, rejeitando algumas e aceitando outras. A Bíblia é a referência que possibilita essa diferenciação.

Macrina permite que as Escrituras lhe mostrem para onde direcionar sua energia teológica. Ela vê Paulo introduzir uma distinção-chave: “O apóstolo diz que ele cria nisto, que a própria era foi moldada pela vontade divina, bem como tudo o que veio a estar nela [...] mas o 'como' ele deixou sem resposta”. Podemos saber que algumas questões são verdadeiras porque as Escrituras nos dizem, mesmo sem entender como são verdadeiras. Macrina usa essa distinção para escapar de ficar atolada em quebra-cabeças intelectuais insolúveis, de modo a poder se concentrar nas questões que Deus a chamou e capacitou para resolver.

Macrina também se baseia nas Escrituras para informar o conteúdo da fé. Ela o faz no nível de versículos individuais, determinando, por exemplo, com base em Gênesis 1.28, que a razão deve controlar as emoções, uma vez que os seres humanos foram, segundo suas palavras, ordenados a “governar sobre todas as criaturas irracionais”. Ela também se baseia na narrativa bíblica mais ampla, por exemplo, ao argumentar com base em vários exemplos bíblicos (Daniel, Fineias, Moisés) que as emoções não são nem boas nem más em si mesmas, mas cabe a nós as usarmos com sabedoria. E, como muitos outros pensadores cristãos primitivos, Macrina usa as Escrituras para interpretar as Escrituras. Em uma passagem particularmente bela, ela tece uma ampla gama de metáforas bíblicas para imaginar o que podem significar as palavras de Paulo, quando este descreve Deus como “tudo em todos” (1Co 15.28). Algum dia, ela diz, Deus será nosso tudo: “um lugar para os santos, uma casa, uma vestimenta, alimento, bebida, luz, riqueza, domínio e todo conceito e nome das coisas que contribuem para uma vida boa para nós. Aquele que se torna tudo também estará em todos”.

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Por fim, Macrina está serenamente confiante sobre a verdade das Escrituras. Podemos descansar seguros no que a Bíblia diz, sem argumentar a cada passo. A certa altura, Gregório expressa preocupações sobre aqueles que rejeitam a existência ou o poder criativo de Deus: Se eles nem mesmo aceitam a realidade de Deus, como devemos convencê-los da ressurreição? A resposta de Macrina: Não deveríamos nem tentar. “Ela disse: ‘Seria mais apropriado manter silêncio sobre essas questões, e não considerar as proposições tolas e ímpias dignas de uma resposta, especialmente porque um dos ditos divinos nos proíbe de responder ao tolo segundo a sua tolice [Pv 26.4-5]. É, sem dúvida, um tolo quem, nas palavras do profeta, diz que Deus não existe [Sl 14.1].’" Não é que Macrina não se importasse com essas pessoas. Seu ponto é que a Escritura nos liberta para manter nossa paz em face de suas críticas; não precisamos ficar na defensiva.

Em vez de forçar a Bíblia a se ajustar a objeções que ela nunca foi idealizada para abordar, Macrina começa com as Escrituras, deixando-as falar em seus próprios termos: “Acho que devemos primeiro examinar brevemente o que está estabelecido sobre esta doutrina, em vários lugares pela Escritura divina.” Ela, então, se baseava em diversas passagens para estabelecer uma base sólida para a ressurreição (Sl 103; Ez 37.1-14; e 1Co 15.51–53, além dos evangelhos). Só depois de discutir as evidências bíblicas a seu favor, é que ela ouviu Gregório falar sobre as objeções. E, mesmo nesse ponto, ela enfatiza as Escrituras: “Primeiro devemos entender qual é o objetivo da doutrina sobre a ressurreição, por que isso é declarado pela revelação sagrada e por que acreditamos nela”. Ao oferecer sua avaliação final, Macrina não mede palavras. “Na verdade, devemos reconhecer a superfluidade e a inépcia das objeções, à medida que sondamos as profundezas da sabedoria do apóstolo.” Vemos a superficialidade desses argumentos, afirma Macrina, mergulhando na profundidade das Escrituras.

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Amando as Escrituras, amando a Deus

A certa altura da obra sobre "A alma e a ressurreição", Macrina se baseia em um texto que Mônica também invocou, no final de "Sobre a vida feliz": 1Coríntios 13. O propósito da vida humana, sugere Macrina, é um aumento infinito no amor, porque a beleza de Deus é ilimitada: “Mas, quando vier o que se espera, tudo o mais se aquieta, enquanto o amor continua a operar, não encontrando nada que o substitua.”

Tanto para Mônica quanto para Macrina, as Escrituras fornecem um roteiro para a vida cotidiana: cantar um salmo de louvor a Deus, criar um filho, reconhecer limites intelectuais, aprender com os outros enquanto se apega à verdade, chorar por um ente querido que está morrendo. Mas, para as duas mulheres, a Bíblia é mais, no final das contas, do que um manual prático de como fazer as coisas. Ela nos direciona para a beleza arrebatadora de nosso Criador e para o propósito final e glorioso de nossas vidas, que dá significado a cada preocupação menor: ela ensina a nos deleitarmos em Deus.

Han-luen Kantzer Komline ensina História da Igreja e Teologia no Western Theological Seminary, em Holland, Michigan. Ela é autora de Augustine on the Will: A Theological Account. Este artigo é parte de “Por que as mulheres amam a Bíblia”, edição especial da CT que destaca as vozes das mulheres no que se refere ao engajamento nas Escrituras. Você pode baixar um PDF gratuito da edição ou solicitar cópias impressas em MoreCT.com/special-issue.

Traduzido por Maurício Zágari

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